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Comendo a exaustão

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Quando quem cozinha se alimenta na escala 6X1? - Tânia Rêgo/Agência Brasil
Uma escala de trabalho que só perde para a desumanidade do próprio salário

Estamos no calor da discussão sobre a necessidade de rever a escala de trabalho 6X1, permitida na legislação brasileira, na qual o trabalhador trabalha seis dias consecutivos e folga apenas um. No Brasil, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) estabelece que funcionários não podem trabalhar mais que 8 horas por dia ou 44 horas por semana, com possibilidade de duas horas extras por dia. O que a lei não estipula é como essas horas devem ser divididas por dia de trabalho, logo, são as empresas que definem as escalas. Muitas delas estipulam cinco dias de trabalho e dois dias de folga (5X2) e muitíssimas determinam seis dias de trabalho e um dia de folga (6X1). Essa última é do meu interesse, sobretudo quando o assunto é o ofício na cozinha.

Vou fazer uma pequena brincadeira de faz-de-conta com você, para que entenda a importância de chamar atenção para a escala de trabalho 6X1. Imagine-se dentro de um ambiente extremamente quente, com um barulho de uma turbina sobre a sua cabeça, você precisando se comunicar com outras pessoas, calça suada, rosto suado, olhos fixos no relógio para poder “soltar” sua produção a tempo, sua comida fria, pois não deu tempo comer (o foco é a comida do outro), pernas doendo porque já fazem quase 6 horas que você está de pé diante de um fogão industrial mais quente ainda do que o espaço que você está habitando neste momento; por vezes você para o que tá fazendo e vai até a pia de pratos lavar alguns utensílios necessários para o uso, pois não há quem faça para você. Se sentiu sufocado? Calma, ainda tem mais, você ainda estará aqui nos próximos cinco dias e, se houver sorte, trabalhará menos de 10 horas. Tá horrorizado? Espere aí, seu aplicativo do banco acabou de apitar, é seu salário. Estamos no final do mês, esqueceu? R$ 1.412,00.

Se tiver um pouquinho de sensibilidade, imagino que não tenha sido fácil participar dessa brincadeira. Na realidade, essa brincadeira é o dia a dia de muitos cozinheiros no Brasil. Uma escala de trabalho que só perde para a desumanidade do próprio salário. Esqueça feriado ou família, a folga, geralmente, é na segunda-feira. Essa é a parte oculta, que não se mostra no salão, mas está por trás do prato delicioso que você comeu ontem. Ser dono de restaurante é, deveras, muito lucrativo. A couraça do cozinheiro é famosa por ser tão grossa que ele pode enfiar uma mão inteira em uma fritadeira que nada acontecerá, e é assim mesmo, não tem como pagar um salário maior ou rever a escala. Nessa espiral do “não tem como”, construímos uma crença que nenhuma faculdade de gastronomia ainda é capaz de contestar: o trabalho braçal é menor, qualquer um faz, não há que se agregar muito valor.

Não tem como reduzir a atual jornada de trabalho sem reduzir o salário dos funcionários, disse a Confederação Nacional do Comércio (CNC). A representante de mais de 4 milhões de empresas nacionais diz que isso implicará no aumento dos custos operacionais das empresas, que embora a iniciativa seja plausível, não tem como ser factível. A exploração compensa, em um país de miseráveis. É bom que seja assim, não é? Ainda tomando a profissão de cozinheiro como exemplo, é bom que este não tenha tempo para, inclusive, se aperfeiçoar em sua profissão, pois qualquer aresta lapidada implica num valor a mais. Vale tudo, mas o que não tem como, mesmo, é uma gota de óleo quente respingar na mão do chefe.

Desculpe-me se esse texto lhe causou indigestão, mas uma frase de Machado de Assis esteve fazendo malabarismo no trapézio que habita a minha cabeça: “Suporta-se com paciência a cólica do próximo”.

Edição: Gabriela Amorim