Comunidade Quilombola de Remanso abriga em si muitas histórias e muita comida boa
Ah, Lençóis... município mais famoso da Chapada Diamantina, provido de uma boa infraestrutura para atividades turísticas. Conta com hospedagens variadas, guias turísticos em abundância, cachoeiras e paisagens exuberantes, além de uma ampla oferta restaurantes. Os casarios de séculos passados abrigam hoje vários dos empreendimentos da área de alimentação. Não é raro passear pelas famosas Rua das Pedras e Rua da Baderna e se deparar com estrangeiros de tudo quanto é canto e pessoas de várias partes do Brasil e da Bahia mostrando um cardápio e oferecendo boa comida em um lugar acolhedor. A cada ano as opções só crescem: em uma mesma rua, encontra-se da moqueca a comida oriental. “O circuito gastronômico daqui é bem maior e melhor do que em Salvador”, ouvi dizer por lá.
Aturdida com boom que teve a cidade, me senti estranha em um lugar que me era corriqueiro. Machado de Assis, sempre certo, disse em Esaú e Jacó que “nem todos podem dizer que conhecem uma cidade inteira”, ainda bem. A Lençóis que eu conhecia havia mudado, e muito. Acanhada com tanto movimento, mesmo em “baixa estação”, estava confusa com o rumo dos acontecimentos. Foi a arte do (re)encontro que tomou suas providências e, nas noites animadas de Lençóis, “do nada”, dei de cara com Cláudia Sepúlveda e seu marido, Zelão, quilombola e pescador. Cláudia foi uma das avaliadoras do Exame de Qualificação do meu mestrado e, sabendo do meu incansável interesse por alimentação e relações sociais, falou: “Thais, vamos te levar no Remanso e de lá vamos para Marimbus, topa? Vou ligar para Nita para ver a possibilidade de ela fazer uma moqueca de apanhari enrolada na folha de bananeira para você ver que espetáculo”. Passados alguns dias desse encontro, lá estávamos nós, chegando no Remanso.
Situada a 20 quilômetros de Lençóis, a Comunidade Quilombola de Remanso é reconhecida como patrimônio cultural pelo Ministério da Cultura. O Remanso, além de guardar Marimbus, única região alagada da Chapada Diamantina, abriga em si muitas histórias e muita comida boa. Antes que você me pergunte, respondo que sim. De Remanso fomos de barco para Marimbus e é uma beleza indescritível, de tirar o fôlego mesmo, mas vou pular para o jantar que tivemos na casa de Dona Nita, ao final do passeio.
Ao chegar “em Nita”, a primeira coisa que lhe perguntei foi como a gente fazia para garantir uma refeição preparada por ela. Sorrindo, com uma latinha de cerveja na mão, ela respondeu: “Comer na minha casa é assim, a pessoa liga e diz: ‘Dona Nita, vou querer reservar um almoço para tantas pessoas, você pode fazer?’ Aí eu digo: claro. Eu posso fazer galinha caipira que criamos aqui, carne do sol, moqueca dos peixes que eu mesmo pesco – pode ser na folha ou no leite de coco –, peixe assado na brasa, apanhari frito, cortadinho de palma, salada de língua de vaca, purê de batata doce, mocofato ou feijoada. Aí a pessoa escolhe; só não pode querer tudo de uma vez, né? [risos]”.
Embora desejássemos comer tudo, nossa escolha foi a moqueca de apanhari na folha e os acompanhamentos seguiram a tônica da anfitriã. Teve abóbora cozida, cortadinho de palma, feijão, arroz, farofa amarelinha (com farinha e dendê feitos na Comunidade) e, uma grande novidade para nós, a polenta de palma. Tudo feito com muito carinho e posto em uma grande mesa na sala da casa de Dona Nita, próximo a um altar com santos e alfazema que aguardavam os festejos do Jarê, manifestação religiosa que acontece exclusivamente na Chapada Diamantina. Enquanto partilhávamos a comida, fiquei sabendo que Dona Nita era também famosa pela sua voz no samba do Jarê, e fomos presenteados com várias cantorias.
No meu segundo prato de polenta de palma com cortadinho de palma, farofa e peixe, me dei conta que estava em uma Lençóis que eu jamais pensei que existisse. Que sorte. Mente aquele ou aquela que diz que a comida não une pessoas. Esse momento de união que reencenei aqui começou com uma dissertação de mestrado sobre comida e ainda está acontecendo quando o transformo em palavras ou quando lembro de um convite que Dona Nita me fez para um Jarê, em dezembro. Talvez, esse encontro já estivesse marcado desde quando recebi uma mensagem, em meu Whatsapp, de Larissa, uma grande amiga que está à frente da Fuxico Produtora (Lençóis), dizendo que tinha um lugar incrível entre Lençóis e Andaraí que eu precisava conhecer. Em meio a tantos restaurantes, é um privilégio também poder comer na casa de alguém tão especial como Dona Nita e navegar pelas sinuosidades de Marimbus. Ainda há muitos rios e muitas Lençóis.
Para almoçar com Dona Nita: (71) 9666-7132
Para indicações em Lençóis: @fuxicoprodutora__ e @taemcasa_chapadadiamantina
Edição: Gabriela Amorim