Gostar ou não gostar de alguma coisa está relacionado com experiências sociais e culturais
“(...) A Bahia é uma festa de cores e sabores. Às receitas milenares de tribos indígenas e à rusticidade improvisada nas senzalas dos escravos africanos, somou-se a fineza e o requinte da cozinha real portuguesa. É satisfação para todos os gostos. E Bom apetite!”. Ainda que pareça um fragmento de algum manuscrito remoto, esse recorte foi retirado de um texto publicado pela Bahiatursa (Empresa de Turismo Bahia S/A) em 2012, e será um bom ponto de partida para abordar um assunto que me inquieta há tempos: o contraste entre o “rústico e o pesado” atribuído à comida africana e o “requinte e a leveza” associada ao alimento europeu. Esse díptico está tão enraizado em nossas mentes que o reproduzimos quase sempre, e quase sempre sem nos dar conta. Quer ver?
“Dendê é muito forte para o gringo”; “passei mal com o tanto de dendê que tinha na moqueca”; “fui comer no restaurante tal, muito sofisticado, a comida baiana quase que não tinha dendê”; “na casa de Dona Bárbara, quando eu vou fazer uma comida ela já chama a atenção, diz que minha mão é muito pesada na gordura”; “a feijoada de rico não tem gordura”; “mulher, coma abará, é mais leve...” e por aí vai. Aposto R$ 1,00 de Big Big se você não se identificou ou lembrou de alguma situação em que uma dessas falas esteve presente.
Você pode até me responder: “Que nada, Thais. É uma questão de gosto”. Concordarei com você, mas chamarei Pierre Bourdieu para conversa, mesmo sabendo que ele não mancharia seu lábio com um acarajé recém-saído do tacho. Bourdieu, em sua obra “A Distinção: crítica social do julgamento” (1979), argumenta que gostar, não gostar, passar a gostar ou deixar de gostar de alguma coisa está relacionado com experiências sociais e culturais moldadas ao longo do tempo. O gosto é reflexo de distinção de classes e opera como um mecanismo de demarcação social. Preferir certos tipos de alimentos ou bebidas revela e reforça a posição [e a cor] de um determinado grupo social. Trocando em miúdos, quanto mais perto do “padrão europeu” se é, se está ou se almeja estar, menor será a evidência da “rusticidade da senzala” aos olhos do outro, of course.
Vou dar um bom exemplo para essa questão: o case das moquecas. A moqueca como conhecemos, cozida no leite de coco e azeite de dendê, é uma comida que estampa principalmente as suas heranças africanas. Nem preciso dizer que a palavra, por si só, já transporta qualquer mortal para Salvador ou Recôncavo da Bahia. Sua versão mais light, mais branca, mais “leve”, mais clean, ganhou um segundo nome próprio: Capixaba. Forjada em um estado cuja maioria da população que, segundo o Censo de 2010 do IBGE, é parda e branca, a moqueca precisou também embranquecer de alguma forma. Não comportar leite de coco e azeite de dendê é também distinguir-se diante da influência negra. O folclore que fique por nossa conta.
Longe de querer ressuscitar discórdias antigas, mas já ressuscitando (rsrsrs), minhas palavras apenas apontam que a comida é também boa pensar (utilizando a assertiva de Lévi-Strauss). Fomos ensinados desde a infância a dizer que não gostamos de determinados pratos, mas fingiram esquecer de nos ensinar o motivo pelo qual não gostarmos. E isso não tem nada a ver com mamãe, ela também não sabe, só sabe que foi assim.
Edição: Gabriela Amorim