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Diante do glamour, não tem nada que um leite condensado não resolva

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A comida enquanto espetáculo - Fernando Frazão/Ag. Brasil
A onda do reality show fez da comida e da gastronomia gêmeos siameses

A palavra gastronomia não é mais novidade para ninguém. A onda do reality show, na televisão e nas plataformas de streaming, fez da comida e da gastronomia gêmeos siameses. Na verdade, preciso retificar, fez da comida um espetáculo. Diante das luzes de um estúdio que não simula em nada a realidade de uma cozinha, a comida ganhou vários sinônimos: arte, experiência, equilíbrio, textura, suculência e outras mil coisas mais. Nós, meros mortais, seduzidos pela imagem, fomos, aos poucos, tentando reproduzir aqueles experimentos em casa. Frustrados com a baixa qualidade de nossas cópias das cópias, saímos em busca de cursos. Culinária? Coisa do passado. A bola da vez é a gastronomia.

Jöel Robuchon, considerado [por alguns] o “chef do século XX”, diz que a gastronomia viveu seu apogeu na época de Luís XIV, na França. Com a Revolução Francesa, a gastronomia desceu alguns degraus do palácio para se dirigir às mesas da burguesia emergente. Dando um salto gigante na história e seguindo o fluxo quase imutável da ordem dos acontecimentos, a gastronomia chega às massas por meio dos restaurantes, tais quais conhecemos hoje, e das redes [ou seriam cadeias?] de fast food.

Apesar do surgimento do que hoje conhecemos como gastronomia seja um tanto controverso, uma coisa é certa: a gastronomia é antes de tudo um conjunto de técnicas de cocção para fazer do ato de comer uma “experiência”, retirando todas as possibilidades de monotonia. A mesa, segundo o gourmet mais famoso dos últimos séculos, Brillat-Savarin, “é o único lugar onde nunca se sente tédio durante a primeira hora”. Diante de tantos espetáculos gastronômicos que se desabrocham diante de nós, te pergunto se essa frase de 1825 não faz total sentido nos relógios do nosso tempo.

A falta de tédio representada hoje em nossas mesas vem sob duas provas. A primeira é a prova que demonstra que aquele fato, aquela prato, é verdadeiro; colocando em evidência e confirmação o que está a comer ou o que tenha comido. Falo da comprovação dada pela fotografia nas redes sociais. Comer não é um tédio diante de uma comida digna do registro que fará todos comerem juntos, com os olhos. A segunda prova é a que se faz no ato de experimentar o que está a postos. Nesse caso, a quebra de tédio vem com a imagem em movimento: o vídeo. Não importa, aqui o que opera é a necessidade de compartilhar com aqueles que não estão sentados juntos à mesa.

A mesa que falava Brillat-Savarin tornou-se um grande palco e a glamourização da comida fez com que ela virasse, sobretudo, um objeto de desejo. Como estamos falando do mais efêmero objeto de desejo, a imagem transforma em eterno aquilo que se vai em apenas uma descarga. Desse modo, a comida passou a andar agarradinha com o mercado. A roda dos cifrões com tamanha exposição gastronômica, aproveita-se muito bem daquilo que ela cria para criar necessidades nos outros. “Olha o que eu tenho, e você não tem”.

Nessa séria brincadeira, aprendemos a sair por aí enfeitando tudo. O brasileiro jamais sairia perdendo diante do show business da alimentação. O brigadeiro, aquela simples bolinha coberta por granulados, ganhou confeitos dourados e carimbos especiais para se sair melhor na foto. A pipoca, não basta mais ser doce ou salgada, tem que ter leite em pó, gosto de bacon ou de tortinha de limão. O geladinho, ganhou um outro “g” de gourmet, leite condensado, creme de leite, chocolate e calda de sorvete. E tudo isso, por mais criativo que possa parecer, opera na lógica do mercado que sabe que sempre haverá um: “você pode ter aquilo, mas eu tenho isso”. A tal gastronomia se popularizou em todos os lugares, Luís XIV que se revolva em sua cova.

Se isso é bom ou ruim? Não sou e nem serei ninguém para julgar. Diante da inventividade humana para não ficar de fora daquilo que a cerca, ficarei sempre com o refrão de Zeca Baleiro: “Quem não pode Nova York vai de Madureira”.  

Edição: Gabriela Amorim