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Comer um milho é olhar para o nosso passado

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O milho já era plantado e consumido nas Américas antes da invasão colonial
O milho já era plantado e consumido nas Américas antes da invasão colonial - Divulgação
O milho, tal qual a mandioca, é consumido e semeado desde o período antecessor à invasão europeia

Começo esse texto relembrando uma fala de Clifford Geertz, dos mais brilhantes antropólogos dos últimos tempos, que diz assim: “O ato de comer nutre não somente a saúde e necessidades do corpo, mas os simbolismos que ele reflete”. Sem dúvidas, entramos no período em que um dos símbolos da nossa alimentação sobressai aos olhos, estou falando do milho. O milho, tal qual a mandioca, é consumido e semeado desde o período antecessor à invasão europeia. Apesar da sua presença não estar tão enfatizada como a mandioca, nas cartas dos escrivães europeus, os povos originários o utilizavam amplamente em seus regimes alimentares, sobretudo nos períodos festivos.

Jean de Léry, em sua História de uma viagem feita à terra do Brasil, do ano de 1578, descreve a utilização do milho na alimentação do povo Tupinambá. O autor, discorre acerca do cauim ou caiçuma, uma bebida tradicional a qual mulheres preparavam com mandioca ou milho. No preparo, mulheres e meninas mascavam uma porção do milho e cuspiam o conteúdo em um pote e, em seguida, essa pasta era cozida antes de ser posta para fermentar. O resultado disso, explica de Léry, era uma bebida opaca e densa, com sedimentos, como um vinho, e seu gosto lembrava leite azedo. Não deixando de destacar a abundância do milho nas terras nativas, o viajante completa seu escrito falando sobre o lugar da bebida de milho nos festejos indígenas.

Servido ainda morno, o cauim era intensamente consumido pelos homens e com certa cautela pelas mulheres, durante algumas cerimônias. “Uma festa ou cerimônia indígena poderia durar muitos dias e, além de ser regada aos cauins ou caiçumas, tinha muita música, dança assobios e gritos o tempo inteiro”. Ao ler o relato de Léry, podemos ter alguma parca noção do lugar que esteve o milho nos tempos de outrora. Apesar da nossa historiografia da alimentação e arqueologia carecerem de estudos acerca do consumo do milho, a sua presença em festejos indígenas não passou despercebida aos olhares e estômagos do outro colonial.

Com a colonização, o milho passou a ser produzido em monoculturas e sua variabilidade genética ficou cada vez mais reduzida. Converteu-se, também, o seu simbolismo. O milho que antes estava em festejos inebriantes dos povos originários, passou a compor o cardápio da casa grande. Com a influência europeia, o cereal misturou-se com açúcar, leite, ovos e especiarias e findou-se em bolos, canjicas, curaus e mingaus. Com a influência dos africanos habitantes da região do Magreb, o milho transformou-se em cuscuz. Logo, um elemento, até onde conhecemos, que esteve situado em momentos peculiares acabou ocupando o alpendre do consumo diário.

Nos meses de junho, apesar de toda a modificação do consumo ao longo da história, o milho volta a ser protagonista e é deslocado do lugar comum do dia a dia. Nos festejos juninos do Nordeste, o milho tornou-se, para além de alimento, um item unificador e simbólico. É impossível pensar nesse período sem as guloseimas que herdamos dos povos que nos forjaram. Na fogueira, tem o milho assado que herdamos dos povos originários, na mesa tem a canjica e, de manhã, para curar o cansaço e a ressaca, tem cuscuz quentinho.

Nas festas de São João, não é só a mistura da cultura alimentar que está materializada, o sagrado e profano também se misturam. As comemorações católicas acontecem em paralelo com as comemorações “da carne”. A dança, a música e as bebidas alcóolicas, se olharmos para o nosso passado, não nos deixa esquecer daqueles que fomos e somos, apesar das assimilações colonialistas. No São João, comemora-se o santo, mas ainda não explicitamos que se comemora também o milho. Entre santos e milhos, há um fragmento de Jean de Léry que podemos retomar e reescrever em nossos tempos e termos: “Às vezes, os homens vomitavam para continuar bebendo e deixar a festa era considerado uma grande vergonha”. Se você me disser que nunca viu cenas como essa, em junho, te pago um quentão.

 

Edição: Gabriela Amorim