Bahia

Coluna

iFood, poesias e os abismos da cozinha profissional no Brasil

Imagem de perfil do Colunistaesd
Se em dez anos ninguém vai cozinhar, de onde virá a comida dos restaurantes? - Fernando Frazão/Ag. Brasil
Da porta para dentro, a realidade da cozinha profissional não tem lá muitas estimas.

“Em dez anos, ninguém vai mais cozinhar, diz presidente do iFood”: esse foi o chamariz da matéria publicada pela Folha de S. Paulo em 18 de fevereiro de 2024. Depois dessa declaração choveram vídeos de culinaristas famosos na internet. Das muitas falas, reproduzo aqui a de Rita Lobo: “Eu enxergo um discurso escravocrata que desconsidera quem cozinha, porque se ninguém vai cozinhar, a comida vai brotar dos restaurantes?”. Ótimo Rita, você quase chegou ao ponto que eu queria. Vamos brincar de fazer o que todos nós, da República das Bananas, aprendemos muito bem desde o berço? Vamos brincar de “jogar pedra na Geni” ou vamos encarar nossos demônios escravocratas para dizer que essa desconsideração por quem cozinha não habita somente a massa encefálica do CEO do iFood? Prefiro a segunda opção.

É muito lindinho ouvir as pessoas dizerem que cozinhar é poesia e que trabalhar com comida é quase um exercício meditativo. Acho fofos os programas de culinária no qual as mulheres fazem comida linda sem que nem uma gotinha de rímel do olho escorra. Desse jeito, a gente até pensa que a comida realmente brota dos restaurantes. O que pouca gente sabe, ou finge que não sabe, é que, da porta para dentro, a realidade da cozinha profissional não tem lá muitas estimas. A afeição pelo cozinheiro ocupa a posição -10 na escala do bem-estar profissional.

Para começo de conversa, a profissão cozinheiro não é regulamentada no Brasil. E sem regulamentação, o domínio dos direitos é quase como o caminhar descalço sobre uma ladeira de cascalhos. A falta de dignidade impera entre quatro paredes. Mesmo sendo restaurante cinco estrelas, as refeições servidas aos funcionários estão longe de serem saudáveis e saborosas, a comida gostosa é só para o cliente. São horas em pé e muitas vezes o “trabalho” te “rouba” o horário de almoço e de descanso. Falando em descanso, a folga é somente às segundas-feiras e só. Ser cozinheiro é fazer a vida social do outro e não a sua. A comida brota da exaustão.

Ser cozinheiro no Brasil ainda é ocupar um lugar de subalternidade. Pretos e pretas, pardas e pardos são a maioria da força de trabalho para chefs que são predominantemente brancos. Tal qual o presidente do iFood e 90% das apresentadoras de programas ligados à gastronomia. Talvez seja por isso que ninguém neste país queira cozinhar. Cozinhar dói. E ganhando pouco mais de um salário mínimo, dói mais ainda. É preciso que a gente pare com essa mania, tão nossa, de sair enfeitando o que não é enfeitável [como inventaria Guimarães Rosa].

Eu espero, de verdade, que no futuro ninguém mais cozinhe sob as condições insalubres das cozinhas profissionais do presente.

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Gabriela Amorim