Pessoas com camisas de blocos caros pechinchando a cerveja do ambulante, na rua
Quem me conhece sabe o quanto eu amo o Carnaval de Salvador. Estar na rua, nesse período, é mais do que diversão, é mais uma oportunidade para ler o mundo que me cerca.
Este ano transitei entre os circuitos da Barra, Campo Grande, Castro Alves, Pelourinho, Curuzu... E em quase todos pude fisgar alguém pechinchando antes de comprar alguma coisa. "Moço, não faz sete na Beats, não?". "Moça, que churrasquinho caro...". "Moço, a cerveja tá quente". "Moça, faz duas latinhas por dez?". E por aí seguiu. Lembrei demais quando eu trabalhava cozinhando. Sempre tinha alguém para questionar o valor do seu trabalho. Claro, quando a gente fala em restaurante caro ou redes de fast foods famosas, nunca há questionamentos.
Pessoas com camisas de blocos caros pechinchando a cerveja do ambulante, na rua. "Foda-se a vida", nesse caso, a vida do outro. Não tenho nada a ver se esse outro acampa no meio da rua, com família, chuva de carnaval e tudo.
Não estamos nem aí se o valor da latinha de cerveja, Beats ou o escambau não vem embutido os sete reais do banho diário pago pelo ambulante, para não ter que dormir sujo no cercado de sua barraca. O valor da quentinha, do almoço, também não está acrescido ao produto. Nessa conta também não estão os dias fora de casa, o descaso que o ambulante sofre com o poder público, a pele manchada pelo protetor solar de procedência duvidosa que é distribuído para aqueles cuja saída no Carnaval é a rua ou a rua.
Em meio ao barulho, esse só é um dos muitos silêncios. O isopor tá on, mas a falta de capacitação e humanidade com os ambulantes já existe há muito tempo. Como ainda temos a cara-de-pau de pechinchar para aqueles que estão de pernas bambas de tanto levar peso nas costas?
Não entramos em apocalipse, porque, na verdade, nunca saímos. O apocalipse da escravidão ainda perdura e podemos vê-lo em cada esquina, com ou sem carnaval. Enquanto houver racismo, seguiremos macetando. O outro, é claro.
Edição: Gabriela Amorim