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Se jogar comida fora é pecado, somos um país de pecadores

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Cada brasileiro desperdiça cerca de 60 kg de comida por ano - Foto: Arquivo CAPA
Dados da FAO mostram que 12,58 milhões de toneladas de alimentos produzidos no país viram lixo

Bem-vindo, 2024! Todo início de ano a gente se pega fabricando os mesmos compromissos: fazer atividade física, estudar mais, aprender um novo idioma, trocar de emprego etc. Uma parte da população brasileira começa a mentalizar o Ano Novo diante de uma mesa bem posta. Peru, farofa, salada, carne de porco... quase um bis da mesa de Natal. Nos tempos de hoje, tira-se fotos, coloca-se nas redes sociais para mostrar para o outro a comida servida. A ostentação comestível que se inicia no Natal e se repete no Ano Novo é, para além de tudo, um retrato cultural que nos persegue diariamente, antes mesmo que pudéssemos extrapolar para terceiros o que somente os olhos de casa viam. Falo aqui da cultura da mesa farta.

Vinda de uma família de classe média, cresci comendo na casa de minha avó. Quando pequena, achava normal sentar-me à mesa e ter, no almoço, disponível: frango, carne de boi, arroz, feijão, salada de verduras, salada de alface e macarrão. Quando fui crescendo e aprendendo a ler o mundo, compreendi que aquilo ali era a representação do que me minha avó chamava de fartura. “Onde come um, come dez”. “Bota água no feijão”. “Antes sobrar do que faltar”. Os ditos populares não mentem. Quando cresci mais um pouco, comecei a reparar mais atentamente. O café com leite sempre sobrava na xícara de minha avó, ela nunca o bebia inteiro. Havia resto de comida no prato, que ia para o lixo. Eram vasilhas de sobras que ficavam rolando na geladeira e, quase sempre, iam para o lixo. Alguém aqui se identifica com essa lembrança? Sim, infelizmente, muita gente.

Nós, brasileiros, não tivemos obras como “A divina comédia”, na qual Dante retratou a fome causada pela Peste Bubônica na Idade Média. Os nossos espectadores/escritores de outrora geralmente habitavam o alpendre da classe média, média alta, diante deles não havia fome, e sim fartura. Da Idade Média de Dante às mesas fartas da Modernidade brasileira, a produção e distribuição de alimentos continuaram obedecendo a uma dinâmica milenar de desigualdades. Forjados na Idade Moderna, nós, brasileiros, nos acostumamos com a fartura, a comida não pode ser “contada”. A fartura não mora somente na parte final do processo que é o consumo. Dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) mostram que 12,58 milhões de toneladas de alimentos produzidos no país viram lixo. Por ano, cada brasileiro desperdiça cerca de 60 kg de comida. Juntado o desperdício alimentar que começa na produção e desagua no consumo, me parece difícil acreditar 125,2 milhões de brasileiros não tenham garantia do que irão comer na próxima refeição.

Precisamos, urgentemente, colocar na agenda de metas pessoais e coletivas para 2024 a diminuição do desperdício de comida. Não é cabível pensarmos em mesas fartas vivendo em um país que está entre os que mais jogam comida fora no mundo. Ações contra o desperdício de comida devem habitar a agenda pessoal e pública. Já sabemos como fazer isso em escala coletiva. A ONG Banco de Alimentos, situada em São Paulo é um modelo de combate ao desperdício que deveria ser copiado em cada estado do Brasil. Cartilhas online com formas de utilização integral dos alimentos e instruções de como se calcular a quantidade de comida a ser produzida por pessoa seriam bem vindas, ao projetar ações em escalas menores.

O Brasil que desperdiça precisa conhecer o Brasil que passa fome. Uma mesa farta não é aquela que produz lixo, mas aquela em que todos estejam alimentados e satisfeitos. Esses são os meus votos para 2024.

Edição: Gabriela Amorim