Ocultar, substituir, apagar a nossa identidade [ou partes dela] só nos distancia do que somos
“Vamos pintar Brasília de urucum e jenipapo” disse a gigante Sônia Guajajara, no Acampamento Terra Livre (ATL) no ano de 2022. Um ano depois, cá estamos nós, à beira de mais um abismo: o PL 490 ou Marco Temporal [duas palavras eufemísticas para violência]. O PL 490, pautado em interesses da bancada ruralista, cria um “marco temporal” no qual considera terras indígenas, somente aquelas ocupadas por eles até o dia 5 de outubro de 1988 [data da promulgação da Constituição de 1988]. Aí é a hora que a gente se pergunta: Qual é o cenário das terras indígenas no Brasil? Segundo os dados do Programa de Povos Indígenas no Brasil, somente 13,8% do total da área brasileira pertencem aos povos originários, e é nesse pasto que o boi insaciável do agronegócio anda de olho.
Sendo mais direta, é preciso ter em vista que, no PL, consta um único objetivo: Inviabilizar a demarcação das terras indígenas. O PL não obedece a um critério objetivo, como os indígenas irão provar que habitavam suas terras em 1988? O Projeto de Lei também prevê que invasores [ruralistas e garimpeiros] podem permanecer nos territórios em disputa até que os mesmos sejam demarcados. Nesta pororoca de absurdos, não há nada que não possa piorar, o texto infere que, se os povos indígenas apresentarem mudanças culturais, o território poderá também ser questionado [sim, é isso mesmo que você está lendo].
Esta cadeia de (des)acontecimentos tem me gerado muito pessimismo. Mas o que esperar de uma sociedade forjada em ausências? Desde a invasão portuguesa os indígenas foram nomeados do que não eram e ganharam estigmas pitorescos que ecoam até hoje. Sob a justificativa de uma cultura inamovível que deve permanecer distante de trocas culturais intersubjetivas com o Outro, o PL nos diz que, para serem indígenas o suficiente, os povos originários devem assegurar [ao máximo] uma cultura estanque. E é a essa cultura indígena estanque que nos apegamos diariamente.
Nos comportamos como se a luta indígena não fosse, também, a nossa luta. Com o nosso espírito bovarrista [fazendo menção ao termo de Lima Barreto para o nosso complexo de vira-lata], nosso esforço social sempre foi o de nos afastar daquele nos originou para nos aproximar daquele que nos inventou. Neste movimento esquecemos do contato diário com a cultura indígena e fantasiamos nossas crianças com tinta guache, cocares de papel crepom e música da Xuxa para comemorar o “dia do índio”. A farinha, a tapioca, o milho, a pimenta, o chimarrão, o churrasco, o açaí, o feijão, a batata, o pequi e quase tudo que nos caracteriza como nação não pode habitar este território de dominância simbólica. O marco temporal, material e simbólico, começou em abril de 1500 se não nos olharmos no espelho, ainda que seja presente do homem branco, poderá ser tarde demais. O Brasil já está pintado de urucum, mas este foi substituído por outro nome: colorau.
Edição: Gabriela Amorim