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Por quem os sinos dobram?

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"Neste caso, não é só a discursividade que importa; a cor da pele também importa" - Mercy Asiima
No Discurso, há o que é dito, o que não é dito e o que é dito de outra forma

Antes dessa onda chamada food reality television se propagar, tal qual um tsunami, nas retinas dos olhares brasileiros, a palavra chef era tão desconhecida como a palavra “conje”.

Piadas internas [e externas] a parte, vamos ao que interessa. Estava revendo o episódio do Street food América Latina, o que fala sobre Salvador, e uma coisa me tocou. Antes de continuar a história abro um parêntese para dizer que a minha trajetória profissional sempre esteve marcada por uma multi/interdisciplinaridade, neste caminho, trabalhei um ano com Análise de Discurso e nunca mais nenhum texto, de nenhum tipo, passou ou passa por mim despercebido.

O documentário começa falando sobre a gastronomia de Salvador e alguns de seus pratos tradicionais como a moqueca, a feijoada e o acarajé. O filme segue, ouvindo pessoas ligadas à cozinha soteropolitana e duas destas pessoas me chamam a atenção. A primeira, é uma mulher branca, dona de um renomado restaurante e é descrita como sendo “chef e proprietária” do local. Andamos mais um pouco e esta mesma mulher irá mencionar “uma [outra] mulher muito especial e que faz uma moqueca espetacular”.

A mulher mencionada é negra e dona de restaurante. Seu restaurante é, também, a sua casa e está localizado em uma comunidade de Salvador. O que me chamou atenção não foi o contraste entre as duas mulheres, mas a forma que a segunda mulher foi descrita pelo documentarista: “Dona ....”. Mesmo estando na mesma posição profissional da primeira mulher, a segunda não é tratada como chef. E esta palavra é o centro do artigo de hoje.

No Discurso, há o que é dito, o que não é dito e o que é dito de outra forma. O não dito, neste caso, nos diz tudo. A gastronomia define chef de cozinha como aquele profissional que gerencia todas as atividades dentro de uma cozinha ou aquele profissional com vasto conhecimento na área que se torna chef por mérito e conhecimento adquirido.

Durante toda a pueril história da nossa gastronomia, muitas chefs foram silenciadas ou chamadas de outra forma. Neste caso, não é só a discursividade que importa; a cor da pele também importa. Vamos exercitar a memória? Faça um giro por Salvador que você vai perceber. Dadá, Alaíde do Feijão, Dona Jô, Ana Célia [que só veio ser adjetivada como chef, na mídia local, há pouco tempo] são algumas entre tantas outras que, mesmo sendo donas e gerenciadoras de seus restaurantes, não foram chamadas de chefs.  

Diante deste giro, a pergunta rola: Se todas essas [e outras] mulheres gerenciam TODAS as atividades de suas cozinhas por que não são chamadas e reconhecidas como Chefs? A pergunta é retórica.  Há alguns anos, uma grande amiga, mulher preta, que gerencia todas as atividades em sua cozinha e estava começando a ser destaque na mídia, me perguntou se pegava mal ela se apresentar como chef de cozinha. Respondi sem respirar: Jamais! Todas nós somos chefs das nossas cozinhas.   

Sim, as duas mulheres às quais me referi no início desse artigo são chefs e proprietárias. E é importante que sejam.
 

*Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Gabriela Amorim