Verônica Bolina: "Estou recomeçando, reconstruindo minha vida"

Transsexual que foi torturada em delegacia em São Paulo (SP) se aproxima da militância e quer voltar aos estudos

Karina Ramos

Reportagem: Rute Pina

Verônica Bolina, de 27 anos, está animada em participar, pela primeira vez, da Marcha das Mulheres Negras neste ano, em São Paulo (SP). "Estou honrada de representar minha classe, de mulheres trans e negras", contou animada.

Sua foto seminua, com corpo e rosto desfigurados é a imagem que, agora, ela quer se afastar — ainda que uma ou outra mancha no corpo rememore o ocorrido. "Estou recomeçando, reconstruindo minha vida."

A aproximação com a militância fez com que ela reconhecesse sua negritude. "Eu nunca me vi nesse estigma, de como a sociedade nos classifica: 'é negro, é pobre, é trans, é isso'. Eu nunca me via como nada disso... Mas eu sou. Eu sou. Eu nunca tinha encarado nem dado ouvidos aos preconceitos das pessoas", refletiu.

Desde que saiu da penitenciária, em maio, Verônica tem frequentado e feito contato com diversas ativistas. "Me senti muito acolhida. Fico feliz de participar e poder mostrar um outro lado, apagar aquela mancha da minha história", afirmou. Entre suas principais referências, ela cita Beyoncé, Martin Luther King, mulheres que perderam filhos por causa da PM e agentes da Pastoral Carcerária.

História

Verônica nasceu em São Bernardo do Campo, região metropolitana de São Paulo (SP), mas foi criada na cidade de Mococa, no interior do estado. Na cidade de menos de 70 mil habitantes, teve uma infância tranquila. Era uma criança brincalhona.

Aos seis anos, no entanto, ela notou uma diferença em relação a outras crianças: "Eu sabia que eu era uma menina. Só que como eu cresci em um berço evangélico, foi muito difícil me aceitar. Eu olhava para o espelho e não me reconhecia.”

A transição foi difícil. Aos 12 anos, quando contou aos pais sobre ser mulher transgênero, teve que lidar com a rejeição de seu pai, que a proibia de entrar em casa e cortou seu sustento financeiro. Aos 14 anos, para se sustentar, começa a se prostituir. Cinco anos depois, foi tentar a vida no Rio de Janeiro (RJ).

"Fui criada em uma cidade muito pequena. Ser negra, pobre, em um primeiro momento homossexual e depois trans... Foi muito difícil. Eu andava na rua e era apedrejada, hostilizada o tempo todo e sofri bullying na escola desde o primeiro até o oitavo ano", relatou ela.

Tortura

Quando relembra os acontecimentos que se desdobraram em 2015,  Verônica afirma que até hoje não sabe explicar exatamente o que aconteceu. Ela estava em uma fase em que tudo, aparentemente, estava se encaminhando: conseguiu um patrocínio de uma loja de musculação e de uma marca de suplemento, e tinha ganhado concurso no Rio de Janeiro. Vislumbrava, finalmente, deixar a prostituição.

Religiosa, ela encontra algumas explicações de cunho espiritual. Para a Justiça, teve que apresentar oito laudos psiquiátricos. Os profissionais afirmaram se tratar de um surto pontual.

O fato é que dia 10 de abril de 2015, uma sexta-feira logo após a Páscoa, Verônica agrediu a vizinha idosa. Após ser detida, Verônica quase morreu nas mãos do Estado. "Quando fui ver, estava na delegacia, não parecia real", relembra. "Eles quiseram arrancar minha vida, como você explica aquilo?", questionou.

Enquanto aguardava na 2º Distrito Policial, no bairro do Bom Retiro, um carcereiro a recepcionou com chutes. Em resposta, Verônica mordeu a orelha do agente — a reação a fez sofrer ainda mais com retaliações. De tanto apanhar, seu rosto ficou irreconhecível.

Verônica relata chutes, socos, tentativas de asfixia com sacos plásticos, spray de pimenta diretamente em seus olhos e disparos de arma de fogo de calibre 12, que inexplicavelmente não atingiram a mulher. 

"Eu lembro que cheguei a falar: 'vocês estão vendo o que estão fazendo comigo?' e eles pisavam na minha cara", relembra. Ela ainda relata que teve as roupas rasgadas e foi estuprada com um cabo de vassoura. 

No Hospital Mandaqui, Verônica lembra de ter sofrido com mais agressões de policiais, além do preconceito médicos e enfermeiros. "Alguns estavam com dó, mas a maioria me xingava e dizia 'não vou botar a mão nisso porque isso deve estar doente'."

Orgulhosos do feito, os policiais vazaram e divulgaram as imagens de Verônica em grupos de WhatsApp. Em poucas horas, as fotos repercutiram em todo o país e ela recebeu apoio de ativistas LGBTs e entidades de proteção aos Direitos Humanos. A campanha ganhou a hashtag #SomosTodasVeronica. "Até hoje eu fico sem entender tanto carinho. Quando eu estava presa eu pensei que minha vida tivesse acabado", conta. 

A mobilização em torno do caso foi tamanha que o delegado Luís Hellmeister a instruiu a gravar um áudio, com a promessa de redução de pena, afirmando que não gostaria de ser usada para fins políticos.

"Independente do que eu fiz, eu merecia respeito. Eu poderia ter feito qualquer coisa. A Suzane Von Richthofen matou os pais e ela não foi espancada, e eu fui. Eu poderia ter feito qualquer coisa, eu não merecia ter apanhado daquele jeito. Eu fui exposta, fui hostilizada em um grupo de WhatsApp. Eles riram da minha cara e minhas fotos foram parar no Brasil inteiro. Eu fui filmada por aqueles jornais sensacionalistas que colocaram na capa 'Traveco Pitbull'".

Na época, o núcleo especializado de combate à discriminação da Defensoria Pública afirmou que houve indícios de tortura, maus-tratos, excessos, abusos, exposição indevida da imagem, coação e constrangimento ilegal envolvendo a prisão de Verônica. Segundo a  Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, o caso está sendo investigado pela Corregedoria da Polícia Civil.

Planos

Após três meses em uma solitária e nove meses em uma cela reservada para a população de travestis e homossexuais do CDP de Pinheiros, zona oeste da capital paulista, e mais sete meses na ala psiquiátrica do Presídio de Taubaté (SP), um juiz concedeu habeas corpus para Verônica no dia 3 de maio deste ano.

No alvará de soltura, o juiz Roberto Zanichelli Cintra determinou que ela siga tratamento ambulatorial pelo prazo mínimo de três anos. Ela ainda deve responder a um processo de lesão corporal contra o agente penitenciário. Quanto a seus agressores, ela afirma que não pensa em vingança. "Eles fizeram aquilo comigo foi porque eles estavam em um momento de ódio, de raiva".

Ainda assim, ela se prepara para entrar com um processo contra o Estado. "Eu paguei pelo que fiz e eu quero que o Estado, que era responsável por me proteger, tenha consciência do que aconteceu comigo e que isso não pode acontecer. Não vivemos na lei 'olho por olho, dente por dente'", disse.

Verônica conta que ainda tem receio de sofrer alguma retaliação ou agressão na rua, mas anda de cabeça erguida. 

Ano que vem, ela pretende voltar a cursar o Ensino Médio. Ela tem o sonho de cursar Educação Física ou nutrição na universidade. Em 2018, se prepara para participar do Programa Transcidadania, da prefeitura de São Paulo, e trabalhar em uma organização não-governamental: "Estou muito, muito feliz."

Edição: Juliana Gonçalves

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