O Quilombo do Jatimane, situado no município de Nilo Peçanha, no Baixo Sul da Bahia, é fruto da aliança entre negros e indígenas. O seu nome faz referência a Jati, a espécie de abelha que era cultivada no território, e ao indígena Mane, que orientou os negros Rosários a encontrarem um território com nascente de água, onde poderiam viver. Atualmente, Pedrina Belém do Rosário, hoje com 35 anos, dá continuidade ao legado deixado por seus ancestrais com a certeza de que a ela foi designado o propósito de cuidar de sua Comunidade.
Desde muito jovem, Pedrina demonstrava inquietação e senso de liderança. Aos 11 anos já questionava em debates escolares o uso inadequado do Rio Jatimane, que era frequentemente tratado como esgoto. Essa preocupação a levou a escrever o texto “Mãe Natureza”, publicado no Jornal do Baixo Sul da Bahia, que a projetou como uma voz ativa dentro da comunidade. Após essa publicação, Pedrina começou a participar das reuniões comunitárias e assumiu a coordenação de grupos de jovens, empenhada em fortalecer a história e a cultura do Jatimane.
Alguns anos se passaram e seus escritos continuaram a reverberar. Foram eles que levaram Pedrina, aos 16 anos, a vivenciar uma experiência marcante: discursar na Câmara de Vereadores sobre os problemas enfrentados por sua Comunidade. “Ao falar, impactei os vereadores que estavam ali, por ser muito nova e estar ocupando aquele lugar”, relembra.
A jovem já reconhecia a atuação dos seus mais velhos no seu processo precoce de aprendizado e iniciação no ativismo. Para ela, sua primeira "graduação" ocorreu no próprio quilombo, por meio da escuta ativa dos griôs e dos idosos do território. “Eu escutava muito os mais velhos da Comunidade e, devido a isso, aprendi sobre o meu território. Com a oralidade dos mais velhos, aprendi a valorizar minha história de luta e resistência”, relata.
Foi através dos saberes e práticas da Comunidade que ela compreendeu sua ancestralidade e, ao sistematizar esses conhecimentos, desde cedo pôde levar o Jatimane para o mundo e trazer o mundo para o Jatimane sem sair dele.
Um lema para a vida e para a luta
Essa frase – “levar o Jatimane para o mundo e trazer o mundo para o Jatimane sem sair dele” – tornou-se o lema de vida de Pedrina em todas as ações e articulações que realiza em prol de seu território. Sua graduação em Relações Internacionais pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) é um exemplo disso. Durante o curso, Pedrina dedicou-se à luta quilombola buscando ampliar o que aprendeu dentro do território e trazer de volta para a comunidade os conhecimentos adquiridos fora dele. Em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), “Diplomacia quilombola nas relações internacionais: do local ao global no Quilombo do Jatimane”, Pedrina utilizou seu território como objeto de estudo, inserindo-o no circuito das pesquisas da área de Relações Internacionais.
O engajamento político da jovem sempre contou com o apoio e incentivo dos pais: sua mãe, Zenilda do Rosário, catadora de piaçava, marisqueira e pescadora; e seu pai, Pedro Belém do Rosário, pescador, que faleceu quando ela tinha 18 anos e a ensinou a manter um belo sorriso onde quer que fosse. Além da formação intracomunitária, a Casa Familiar Agroflorestal do Baixo Sul da Bahia (CFAF-BSB) foi um divisor de águas em sua trajetória. Ela nos relata que na CFAF-BSB aprendeu a valorizar ainda mais sua ancestralidade e reflexões que aprendia dentro da Comunidade. Em 2023, ela foi contratada pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA) para um estágio na área de Relações Internacionais, processo que também foi resultado do seu empenho junto ao seu território.
Ancestralidade e geração de renda
O esforço de Pedrina em “trazer o mundo para o Jatimane" foi o que resultou em uma série de iniciativas que hoje fortalecem a economia e a identidade do território. O Quilombo do Jatimane se configura como um território de Terra e Água, no qual as famílias tiram o sustento através da pesca artesanal e da mariscagem. O rio e o mangue têm papel central na vida do seu povo, assim como a terra onde é cultivada a piaçava, fibra que a Comunidade comercializa.
“Quando você pensa a cadeia da piaçava, você tem a extração, você tem a parte de limpeza, a parte de beneficiamento e a parte de comercialização. Antigamente se pensava só em tirar a piaçava do pé, as mulheres limpavam, faziam os mondongo e exportavam. Hoje, a gente consegue fazer com que isso gire na própria Comunidade. E, para além de exportar, a gente consegue produzir o artesanato da cestaria, produzir biojoias, ou seja, a gente conseguiu gerar mais renda fazendo subprodutos da piaçava. Esta atividade é a mais forte na Comunidade e 80% da Comunidade vive dela” , afirma Pedrina, que, juntamente com a Comunidade, passou a mudar a cadeia de produção e renda do Quilombo.
Além da piaçava, a Comunidade também obtém renda através do Turismo de Base Comunitária, o que torna a economia do território mais circular e criativa, já que o manejo produtivo e da circulação das mercadorias são feitos pelos próprios moradores. As famílias administram seus restaurantes, que oferecem pratos típicos do Jatimane, feitos com ingredientes da pesca e mariscagem, utilizando infraestrutura que respeita as especificidades locais, como o uso da piaçava. A ausência de agentes externos controlando os bens naturais da comunidade é o que garante o bem-viver da população, que prospera em sintonia com a natureza e seus modos de vida.
“Hoje temos mais de cinco restaurantes, mais de cinco pousadas, e tudo isso foi fruto do nosso trabalho. Mostramos para as pessoas que o Jatimane pode crescer com os próprios empreendedores locais. As pousadas são da Comunidade, os restaurantes são da Comunidade, não há uma interferência de fora para dentro”, aponta a jovem quilombola.
Ela enfatiza que a comunidade não busca desenvolver um turismo de massa, tampouco atrair grandes multidões. O objetivo é proporcionar uma vivência autêntica da história e da cultura do povo, ao mesmo tempo em que gera renda para os moradores locais.
Essa possibilidade de geração de renda é o que permite a permanência dos quilombolas, especialmente os jovens, no território. Pedrina explica que muitos jovens não querem sair da Comunidade, seja por uma insuficiência financeira, seja pelo desconhecimento das políticas públicas de incentivo à permanência nas universidades ou pelo simples desejo de permanecer em seu território. Para ela, se oportunidades forem criadas dentro do Jatimane, as pessoas não terão necessidade de sair — ou, se saírem, poderão retornar para contribuir com a Comunidade. Nesse sentido, a associação comunitária está articulando parcerias com universidades para oferecer cursos de ensino a distância (EaD), possibilitando que os moradores tenham acesso à educação formal sem precisar deixar o território.
O povo como protagonista da sua história
A experiência do Quilombo do Jatimane mostra que não há pessoas melhores para cuidar e gerir os territórios de povos e comunidades tradicionais do que os próprios povos. Em face do avanço do agronegócio, da mineração, do agro-hidronegócio, dos parques eólicos e das inúmeras ações expropriatórias empreendidas pelo Estado, por empresas nacionais e internacionais, essa é uma realidade que aflige muitas Comunidades Tradicionais. É importante conhecer e reconhecer histórias em que os povos são protagonistas e soberanos em seus territórios ancestrais.
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Em uma visão colonialista, as comunidades negras rurais, os quilombos, e os territórios predominantemente ocupados por pessoas pretas são frequentemente, e de forma equivocada, associados ao atraso e à falta de perspectivas positivas de vida. No entanto, dados do Map Biomas (2023) revelam uma realidade oposta: os territórios quilombolas são as áreas com menor índice de desmatamento no Brasil. Esses territórios ocupam 3,8 milhões de hectares, o equivalente a 0,5% do território brasileiro, dos quais 3,4 milhões são de vegetação nativa, enquanto apenas 14% são áreas de uso antrópico. A realidade evidencia que, nesses territórios, onde as cosmopercepções se fundamentam nos saberes tradicionais africanos e indígenas, encontram-se esperança e soluções para a atual crise ambiental e climática que o planeta enfrenta.
O Quilombo do Jatimane é reconhecido como território quilombola pela Fundação Cultural Palmares desde 2005, e está desde 2008 com processo aberto no INCRA para regularização fundiária. Apesar disso, o Quilombo ainda não enfrenta disputas fundiárias, o que possibilita a implementação de iniciativas que fortalecem o bem-viver e a autonomia dos quilombolas. No entanto, a Comunidade enfrenta outros desafios, como a falta de saneamento básico — algumas casas ainda despejam esgoto diretamente no rio — e problemas estruturais na educação e na saúde. A escola local atende apenas até o 4º ano e carece de material pedagógico e infraestrutura adequada. No setor de saúde, o posto da Comunidade opera com recursos limitados. Mesmo diante dessas dificuldades, a Comunidade segue unida, articulando-se para conquistar direitos e construir uma vida digna.
Apesar da união, Pedrina destaca que as lutas e conquistas no Jatimane são majoritariamente protagonizadas por mulheres. Os homens participam apenas em momentos específicos.
“A gente fez uma atividade aqui que precisava da mão de obra dos homens, e eles até foram. A gente construiu o espaço que hoje é o receptivo do Jatimane para o turismo, e a maioria que estava lá eram as mulheres, fincando os paus, mexendo o barro para fazer as paredes. Os homens vieram na hora de colocar o teto, porque a gente não quis se arriscar. Foram um, dois ou três que ajudaram. Mas tudo que vocês veem aqui em relação ao trabalho comunitário é protagonizado pelas mulheres”, comenta a quilombola, que segue acreditando no poder da coletividade.
“A coletividade para mim ela é basilar, o próprio nascer dentro de um território quilombola, já traz essa ‘Comum-Unidade’, essa coisa da comunhão, do compartilhamento, de que todo mundo está ali, mesmo com seus conflitos pessoais e interpessoais, todos estão ligados por essa Comunidade” completa. O Quilombo do Jatimane ainda tem um fator que fortalece ainda mais esse senso de Comunidade: todos no território tem um parentesco familiar e carregam o sobrenome “Rosário”.
Esse senso de coletividade que faz Pedrina seguir acreditando no poder que a luta produz na transformação da vida quilombola: “Sigo acreditando que é possível ser quilombola, que é possível viver no Quilombo, mas é possível também crescer com dignidade, formação e conhecimento, valorizando os saberes e fazeres locais, a partir de nossa própria história”.
Edição: Lorena Andrade