Bahia

Fé e resistência

Quem tem fé vai a pé e sem intolerância: Lavagem do Bonfim reúne milhões de pessoas em celebração que mostra a resistência negra no país

Tradicional festa popular tomou a capital baiana nesta quinta (16) e ressalta a necessidade de paz entre as religiões

Brasil de Fato | Salvador (BA) |
Cerca de dois milhões de pessoas participaram da Lavagem do Bonfim, a segunda maior festa popular da Bahia - Manu Dias/GOVBA

No calendário de Salvador, a segunda quinta-feira depois do Dia de Reis não é apenas uma data, é um destino: todos os caminhos levam à Colina Sagrada, no Bonfim. Vestida de branco, uma multidão se reúne logo cedo em frente à Basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia, no Comércio, de onde sai o cortejo; a pé, caminham juntos por mais de seis quilômetros; com fé, chegam na Igreja do Senhor do Bonfim, destino que acolhe promessas, pedidos e agradecimentos dos milhões de fiéis, muitos deles que amarram as famosas fitinhas do Bonfim no gradil da igreja para firmar suas preces. Hoje, 16 de janeiro, é dia de Lavagem do Bonfim, uma celebração em que alegria e devoção se misturam em diferentes credos para transformar a data na segunda maior manifestação popular da Bahia. 

Neste ano, a lavagem celebra os 280 anos da chegada da imagem do Senhor do Bonfim a Salvador. Com o tema “Encharque o Coração de Esperança”, em alusão ao Ano Jubilar de Esperança, instituído pelo Papa Francisco, o cortejo saiu da Basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia por volta das 8h, seguindo o trajeto rumo à Colina Sagrada. Cerca de dois milhões de pessoas participaram da festividade, de acordo com padre Edson Nunes, reitor da Basílica Senhor do Bonfim.


Uma multidão de fiéis sobe a Colina Sagrada para agradecer e fazer seus pedidos / Lorena Andrade

A soteropolitana Aline Nunes destaca a importância da celebração para o povo baiano. “A lavagem do Bonfim é uma tradição de fé. É o momento em que o baiano pede ajuda ao Senhor do Bonfim para que o ano seja de saúde, paz, prosperidade e bons fluidos. Nada melhor do que abrir o ano de 2025 com fé, caminhando com penitência para que a gente consiga alcançar os nossos desejos”.

A jovem também destaca o caráter plural da celebração, que reúne tanto religiões cristãs como as de matriz africana.

“Aqui é a Baía de Todos-os-Santos. Todo mundo aqui se abraça. A gente não pode se furtar de estar juntos num culto ecumênico com todos os nossos irmãos. Essa para mim é a tônica da festa”, salienta. 

Expressão de resistência negra

O culto ao Senhor do Bonfim, que representa Jesus crucificado, tem origem em 1745, quando Theodózio Rodrigues de Faria, capitão-de-mar-e-guerra da marinha portuguesa e traficante de pessoas escravizadas, prometeu que, caso sobrevivesse à travessia marítima que então enfrentava, iria trazer a imagem do Senhor do Bonfim de Portugal para o Brasil. Dito e feito. Não apenas a divindade chegou a Salvador como, em 1746, teve início a construção da Igreja do Senhor do Bonfim. Em junho de 1754, após a conclusão das obras internas, a imagem foi trazida da Capela da Penha para a Colina do Bonfim em procissão.

No entanto, segundo o Dossiê Festa do Bonfim: a maior manifestação religiosa popular da Bahia, produzido pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional (Iphan), foi a população negra que deu a dimensão que a celebração tem hoje. Ao longo dos anos, o culto ao Senhor do Bonfim começou a atrair inúmeros fiéis. E a segunda quinta-feira após o Dia de Reis se firmou, a partir do início do século XIX, como a data de lavagem do templo, ato que as pessoas negras passaram a associar ao culto de Oxalá, orixá relacionado à criação do mundo e símbolo da paz nas religiões de matriz africana.

Muitos historiadores apontam esse como um dos exemplos do sincretismo religioso que, em essência, representa uma estratégia de resistência das pessoas escravizadas para manter a sua fé mesmo num cenário de extrema opressão. 


As baianas desfilam pelo cortejo e realizam a lavagem das escadarias do Bonfim, um dos momentos centrais da celebração / Lorena Andrade

A Igreja Católica tentou proibir a lavagem, impedindo que o interior dos templos fosse acessado durante as festas. Mas o plano não foi totalmente bem-sucedido. As mulheres negras deixaram de lavar o interior da Igreja do Bonfim, mas continuaram a realizar a celebração do lado de fora. Munidas de vassouras, flores e quartinhas com água de cheiro, seguiram fazendo a lavagem do adro e da escadaria do templo, ritual que permanece até hoje.

Resgatar o papel do candomblé para a existência da Lavagem do Bonfim ainda é um desafio. Givanildo Nascimento, empregado doméstico, participa pela segunda vez do cortejo e acredita que um dos principais problemas a serem enfrentados hoje, dentro e fora da festa, é a intolerância. 

“A gente tem que tentar acabar com essa intolerância religiosa, nós do candomblé precisamos ocupar esse espaço. A gente usa branco, a gente pede paz. Principalmente entre as religiões”, destaca. 

Um desfile sob o sol e a alegria

Entre a saída do cortejo e a lavagem das baianas no alto da Colina Sagrada, realizada por volta das 13h, a multidão caminhou debaixo de sol, e também com muita arte. Ao longo dos quilômetros de procissão, diversas entidades, associações culturais, bloquinhos carnavalescos, músicos e fanfarras também desfilaram, trazendo o tom profano para a festa. Segundo a Prefeitura de Salvador, 79 grupos se cadastraram junto à Empresa Salvador Turismo (Saltur) neste ano para o cortejo. Dentre elas, algumas entidades já tradicionais, como Associação Afoxé Filhos de Gandhy, bloco Ilê Aiyê e Malê Debalê.

Um dos grupos presentes é o Orishalá, bloco de percussão composto só por mulheres. O cantor e compositor Gerônimo Santana, um dos nomes mais respeitados da música baiana, é um dos idealizadores do grupo, que busca, na lavagem, reforçar a mensagem de paz e tolerância. 


O bloco Orishalá busca trazer uma mensagem de paz e tolerância na festividade / Lorena Andrade

“O Orishalá é um bloco de percussão só de mulheres tocando, e manda uma mensagem de que Deus ama o povo do candomblé, Deus ama todas as religiões”, aponta o artista.

Caminhando à frente do bloco, o músico também reforça a importância da população negra para a existência de toda essa festividade.

“É justamente o povo negro que promove essa alegria que tem no coração, isso que estampa, que contagia todo mundo. Se não fossem os pretos, o que seria de nós?”, finaliza.

Edição: Martina Medina