Criado em 1569 e reconhecido como um dos quilombos mais antigos do Brasil, o Quingoma tem sido alvo de decisões judiciais que ameaçam a existência do território. Lideranças denunciam que, nas últimas semanas, a comunidade, localizada em Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador, vem sendo surpreendida com inúmeras intimações referentes a processos judiciais, a maioria deles iniciados pela Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (CONDER), órgão do governo do estado responsável por projetos e obras nas áreas de mobilidade urbana e habitação. Iniciados há mais de dez anos na justiça estadual, as decisões que a comunidade pôde ter acesso até então foram desfavoráveis aos moradores, determinando, inclusive, a desocupação dos seus imóveis.
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Embora tenha sido certificada como comunidade remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares em 2013 e integre uma Área de Preservação Ambiental (APA), o processo de regularização fundiária do Quilombo Quingoma está paralisado desde 2015 pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Essa lacuna tem deixado o território vulnerável às investidas do poder público e da especulação imobiliária, que quer tomar para si o território ancestral. Rejane Rodrigues, coordenadora executiva da Associação Quilombo Quingoma e uma das principais lideranças da comunidade, salienta que as investidas recentes buscam desarticular os moradores.
“Toda essa pressão é intencional, tanto do estado quanto da gestão municipal. E eles vêm fazendo isso mesmo para que as famílias acabem desunidas, se segregando. A gente está lutando por um leão maior que vai acabar engolindo a gente. As famílias estão descrentes, estão desacreditadas porque várias outras comunidades vêm sofrendo, e um exemplo disso foi a morte da Mãe Bernadete”, aponta.
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Segundo o Núcleo de Assessoria Jurídica Popular (NAJUP) do Serviço de Assistência Jurídica Universitária da UFBA (SAJU), que assessora o quilombo, há graves irregularidades nos processos.
"O Governo do Estado da Bahia, por meio da CONDER, notavelmente violou o devido processo legal, isso porque ações judiciais que versem sobre terras remanescentes de quilombos devem tramitar exclusivamente na Justiça Federal", aponta.
Expansão urbana ameaça quilombo
A batalha pela regularização fundiária do Quilombo Quingoma é longa e se dá em diversas frentes. Segundo relatório produzido pelo NAJUP que sistematiza o caso, em 2017, o governo estadual, através da Casa Civil, apresentou uma uma proposta de delimitação para o Quingoma reduzindo 80% do território identificado no RTID (sigla para Relatório Técnico de Identificação e Delimitação, um documento produzido pelo Incra para regularizar territórios quilombolas), concedendo uma área de 284,76 hectares para titulação. A proposta foi rejeitada pela comunidade e as lideranças quilombolas passaram a traçar outras estratégias para regularização do território.
Além disso, o processo acelerado de expansão urbana na região, impulsionado pela especulação imobiliária local e projetos nos âmbitos estadual e municipal, acentuam ainda mais os conflitos no território. Nos últimos anos, a área quilombola tem sido ameaçado por pelo menos três grandes obras: a construção da Via Metropolitana, inaugurada em 2018 sob a responsabilidade do consórcio privado Bahia Norte com o apoio do governo estadual, e que cortou as terras da comunidade ao meio; a construção do Hospital Metropolitano de Lauro de Freitas, inaugurado em 2022; e o Joanes Parque, projeto residencial de iniciativa privada licenciado pela prefeitura em 2023 cujas obras, inclusive, estão sendo realizadas em trechos de Mata Atlântica que compõem a APA Joanes-Ipitanga.
"A especulação imobiliária na região tem pressionado a comunidade, trazendo empreendimentos que desconsideram o valor cultural e histórico desse povo. Essa situação ameaça a continuidade dos legados, que dependem diretamente do espaço onde foram originalmente cultivados. Mesmo diante das adversidades, a comunidade permanece mobilizada na defesa de seu território. A busca pela regularização fundiária é uma estratégia importante para garantir a permanência no seu lar e a continuação de seus costumes", destaca o documento do NAJUP.
Rejane, que foi incluída no programa de proteção do Estado após receber ameaças de morte, salienta que, apesar das tentativas de segregação, os e as quilombolas buscam se fortalecer através da coletividade.
"A comunidade se une para que as lideranças que estão à frente se mantenham vivas, porque a gente sabe que o que eles querem é ceifar as vidas das lideranças para servir como exemplo e acabar dominando tudo", denuncia.
Edição: Gabriela Amorim