Bahia

Conflitos no campo

Especulação imobiliária e investidas do poder público geram insegurança no Quilombo Quingoma, em Lauro de Freitas (BA)

Nas últimas semanas, moradores têm sido surpreendidos por decisões judiciais que ameaçam permanência no território

Lauro de Freitas (BA) |
Quilombolas têm recebido decisões judiciais que determinam desocupação dos seus imóveis - Beatriz Tuxá / CESE

Criado em 1569 e reconhecido como um dos quilombos mais antigos do Brasil, o Quingoma tem sido alvo de decisões judiciais que ameaçam a existência do território. Lideranças denunciam que, nas últimas semanas, a comunidade, localizada em Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador, vem sendo surpreendida com inúmeras intimações referentes a processos judiciais, a maioria deles iniciados pela Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (CONDER), órgão do governo do estado responsável por projetos e obras nas áreas de mobilidade urbana e habitação. Iniciados há mais de dez anos na justiça estadual, as decisões que a comunidade pôde ter acesso até então foram desfavoráveis aos moradores, determinando, inclusive, a desocupação dos seus imóveis.

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Embora tenha sido certificada como comunidade remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares em 2013 e integre uma Área de Preservação Ambiental (APA), o processo de regularização fundiária do Quilombo Quingoma está paralisado desde 2015 pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Essa lacuna tem deixado o território vulnerável às investidas do poder público e da especulação imobiliária, que quer tomar para si o território ancestral. Rejane Rodrigues, coordenadora executiva da Associação Quilombo Quingoma e uma das principais lideranças da comunidade, salienta que as investidas recentes buscam desarticular os moradores.

“Toda essa pressão é intencional, tanto do estado quanto da gestão municipal. E eles vêm fazendo isso mesmo para que as famílias acabem desunidas, se segregando. A gente está lutando por um leão maior que vai acabar engolindo a gente. As famílias estão descrentes, estão desacreditadas porque várias outras comunidades vêm sofrendo, e um exemplo disso foi a morte da Mãe Bernadete”, aponta. 

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Segundo o Núcleo de Assessoria Jurídica Popular (NAJUP) do Serviço de Assistência Jurídica Universitária da UFBA (SAJU), que assessora o quilombo, há graves irregularidades nos processos.

"O Governo do Estado da Bahia, por meio da CONDER, notavelmente violou o devido processo legal, isso porque ações judiciais que versem sobre terras remanescentes de quilombos devem tramitar exclusivamente na Justiça Federal", aponta.

Expansão urbana ameaça quilombo

A batalha pela regularização fundiária do Quilombo Quingoma é longa e se dá em diversas frentes. Segundo relatório produzido pelo NAJUP que sistematiza o caso, em 2017, o governo estadual, através da Casa Civil, apresentou uma uma proposta de delimitação para o Quingoma reduzindo 80% do território identificado no RTID (sigla para Relatório Técnico de Identificação e Delimitação, um documento produzido pelo Incra para regularizar territórios quilombolas), concedendo uma área de 284,76 hectares para titulação. A proposta foi rejeitada pela comunidade e as lideranças quilombolas passaram a traçar outras estratégias para regularização do território. 

Além disso, o processo acelerado de expansão urbana na região, impulsionado pela especulação imobiliária local e projetos nos âmbitos estadual e municipal, acentuam ainda mais os conflitos no território. Nos últimos anos, a área quilombola tem sido ameaçado por pelo menos três grandes obras: a construção da Via Metropolitana, inaugurada em 2018 sob a responsabilidade do consórcio privado Bahia Norte com o apoio do governo estadual, e que cortou as terras da comunidade ao meio; a construção do Hospital Metropolitano de Lauro de Freitas, inaugurado em 2022; e o Joanes Parque, projeto residencial de iniciativa privada licenciado pela prefeitura em 2023 cujas obras, inclusive, estão sendo realizadas em trechos de Mata Atlântica que compõem a APA Joanes-Ipitanga.


Manifestação dos quilombolas em 2019 contra delimitação do território / Reprodução

"A especulação imobiliária na região tem pressionado a comunidade, trazendo empreendimentos que desconsideram o valor cultural e histórico desse povo. Essa situação ameaça a continuidade dos legados, que dependem diretamente do espaço onde foram originalmente cultivados. Mesmo diante das adversidades, a comunidade permanece mobilizada na defesa de seu território. A busca pela regularização fundiária é uma estratégia importante para garantir a permanência no seu lar e a continuação de seus costumes", destaca o documento do NAJUP. 

Rejane, que foi incluída no programa de proteção do Estado após receber ameaças de morte, salienta que, apesar das tentativas de segregação, os e as quilombolas buscam se fortalecer através da coletividade. 

"A comunidade se une para que as lideranças que estão à frente se mantenham vivas, porque a gente sabe que o que eles querem é ceifar as vidas das lideranças para servir como exemplo e acabar dominando tudo", denuncia.

Edição: Gabriela Amorim