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Quebra de louças, ecos de Búzios

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A coragem de Eliane Marques de levantar-se diante de acadêmicos que, em silêncio, ouviram tal discurso infame, nos dá notícias de que, como na Revolta dos Búzios, não vamos nos calar diante de racistas - Reprodução
Se for preciso, quebraremos todos os pratos de uma solenidade e seus protocolos

Já sabemos dessa história e recontamos para não esquecê-la, enquanto escrevemos outras para que a repetição de uma violência dê lugar a outros mundos diferentes do que já fomos capazes de construir até aqui. Uma travessia mortífera marca a história do povo preto e uma vida em diáspora. Ter sobrevivido a esse trajeto traumático em condições degradantes, no limite entre vida e morte já diz muito de nossa força. Em um território desconhecido, com línguas, cosmopercepção e modos de vida diferentes, o povo preto precisou inventar os meios de se libertar de uma realidade caracterizada pela distinção dos seres e pelo ódio racial. Ainda sofremos com os impactos deste trauma primevo do desenraizamento, deslocamento forçado, quebra de vínculos significativos, imposição de uma língua, dias de horror e incertezas em relação ao presente e ao futuro vividos pelos nossos antepassados e ancestrais.

Capturas, castigos, prisões e mortes foram alguns dos tratamentos aviltantes dados às pessoas negras e indígenas escravizadas que recusavam o lugar de objetos, propriedades e máquinas produtivas dos colonizadores. Ainda é possível perceber os restos da colonização e escravidão nas mentalidades e funcionamento da sociedade nos dias de hoje. Não faz muito tempo que a classe média e elite brancas deste país vociferavam contra a regulamentação do trabalho doméstico, exercido em sua maioria por mulheres negras. A justificativa é que tal regulamentação afetaria negativamente a relação já existente com as trabalhadoras domésticas consideradas “como se fossem da família”. 

Como “se” fôssemos louças dessas famílias, no último dia 12 de dezembro deste ano, assistimos estarrecidas a um pronunciamento horroroso do presidente da Academia Rio-Grandense de Letras, Airton Ortiz, quando da entrega de premiações. Numa fala infeliz, declarou que a força e o pioneirismo da literatura gaúcha decorre da imigração italiana e alemã e que o restante do país não obteve o mesmo em razão da predominância escrava. Numa fala como esta, retratação pública é o mínimo que se espera. O justo seria a destituição deste senhor da presidência. 

Vejam, dentre as escritoras premiadas por esta Academia estava Eliane Marques, pelo romance “Louças de Família”. Mulher negra, escritora e psicanalista cujo romance tem sido aclamado pelas premiações que tem recebido ao longo do ano. O livro é uma obra prima que consegue numa perspectiva amefricana trazer à tona a trama subjetiva que dá forma ao racismo tão presente nas chamadas famílias de bem da classe média e elite. Kuandu, a narradora, testemunha em sua família e na figura de sua tia Eluma a objetificação de pessoas negras nas diversas relações, sobretudo de trabalho e os efeitos disso em suas subjetividades. A complexidade da narrativa nos abre para compreensões múltiplas sobre o que é isso que se repete como neurose cultural. 

A coragem de Eliane Marques de levantar-se diante de acadêmicos que, em silêncio, ouviram tal discurso infame, nos dá notícias de que, como na Revolta dos Búzios, não vamos nos calar diante de racistas. Se for preciso, quebraremos todos os pratos de uma solenidade e seus protocolos. Como abolicionistas que somos, faremos manifestos sediciosos em todas as letras e suas Academias. Faremos quantas vezes forem necessárias um Levante pelo nosso direito de existir sem sermos brutalizados pelo racismo. Nós fazemos isto há muito tempo. “Há quase 500 anos, desde a diáspora africana, e bem mais que isso, desde a invasão de Pindorama, os saberes e fazeres produzidos a partir da conexão das experiências não-brancas nestas terras alicerçam identidades que lutam por direitos e constroem seus sentidos”1.

Algumas escritoras negras abolicionistas que tão bem retratam esta realidade também experimentaram na carne que relações são estas. Carolina Maria de Jesus foi catadora de lixo na favela no Canindé e empregada doméstica em São Paulo, Conceição Evaristo também foi no Rio de Janeiro enquanto estudava, Lélia Gonzalez foi babá. Tentaram embranquecer Maria Firmina dos Reis no Maranhão. Apesar do destino comum que tentam nos impor, nada apaga o empreendedorismo e o trabalho de fazer um presente melhor e escrever um futuro digno realizado por nós mulheres negras, apesar das dificuldades que encontramos para cuidar de nós e de nossas comunidades.

Segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais referentes ao 1º semestre de 2024 divulgado por organizações de defesa dos direitos humanos como a Conectas, temos 663 mil pessoas encarceradas no Brasil. Destas, 64% são de pessoas negras. Sabemos que a primeira instituição do Código Penal foi para criminalizar e penalizar a população negra. Os negros fugidos, os revoltosos, os que criavam motins foram violentamente silenciados e mortos. Essa tentativa de nos aniquilar que atravessa os tempos é denunciada também pelas letras de mulheres negras como Esperança Garcia, a primeira advogada negra reconhecida pela comunidade jurídica pelo seu feito de, como escravizada no século 18, ter escrito uma petição ao governador da Capitania de São José do Piauí denunciando as violências pelas quais passava a sua família. Como Carla Akotirene, Sueli Carneiro, Juliana Borges, Angela Davis e Marielle Franco, nossas contemporâneas, que com suas pesquisas e livros denunciam o problema de Segurança Pública como questão de seletividade penal e racial que reproduz os mecanismos coloniais de objetificação e criminalização do negro e tudo que lhe refere. Estas mulheres nos apresentam a possibilidade de vivermos numa sociedade sem cárceres. A luta pela abolição da escravidão, das senzalas, das prisões, dos quartinhos de empregada ainda não acabou. Porque já entendemos que não haverá liberdade para pessoas negras no Brasil se não houver na América, se não houver em África, se não houver em qualquer lugar deste planeta. 

E porque herdamos de África a ideia de pertencimento e responsabilidade pela nossa comunidade, apesar das diferenças entre nossos povos, é que trabalhamos juntos pela abolição de todas as formas de opressão e pela consagração da liberdade. A criação de territórios negros livres, como a experiência palmarina, está no nosso DNA como povo amefricano. E vejamos esse território não só com a materialidade de um espaço geográfico, mas existencial também, como a língua pretoguesa que inventamos e nossos modos de exprimi-la.  

Diante dos silenciamentos históricos, das tentativas de apagamentos e vestígios de nossa memória e história, recontá-la recuperando nessa memória coletiva que se presentifica na realidade e expõe as agonias sofridas pelas pessoas negras ontem e hoje, mas também apontando caminhos, é um ato político. Porque é um ato de transformação, quem escreve a própria história deixa de ser o Outro, o objeto, e passa a ser quem narra a si mesmo, autor e autora de si. Como diz Grada Kilomba “eu me torno a oposição absoluta do que o projeto colonial predeterminou”. Um ato de rebeldia. 

Escrever, para nós mulheres negras, é recontar a história da nossa ancestralidade a partir das estratégias de resistência que criamos para continuar existindo e não este lugar de subalternidade passiva. Somos arquivos de um inconsciente coletivo e essa é uma repetição que buscamos quebrar, sonhamos com uma outra realidade e um outro mundo em que não sejamos vistos deste modo delirante e doente, cuja pele parece nos aprisionar num pesadelo, até mesmo em momentos de celebração e glória, como aconteceu com a escritora Eliane Marques. A literatura negra vive e tem força, seja na oralitura, seja nas letras, contaremos nossas histórias por nós mesmos.

 

1. MOURA, Iara; MENDONÇA, Jonaire; TERSO, Tâmara. Territórios e amefricanidades: pensar tecnologias e comunicações a partir do sul global. In: MELO, Paulo Victor; TERSO, Tâmara (Org.). Ecos de Búzios: contribuições ao debate brasileiro sobre comunicação e relações étnico-raciais. São Paulo: Dandara/Intervozes, 2024.

 

Edição: Lorena Andrade