É importante coordenar as pautas progressistas do governo com a mobilização social
A prisão do candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro em 2022 e ex-ministro general Braga Neto foi um momento importante para a consolidação da Democracia e do Estado democrático de direito no Brasil, mas deve ser seguido de muitos desdobramentos e estamos longe ainda de saber se esse processo avançará para um patamar de Democracia substantiva ou se encararemos novos retrocessos. Afinal, após a Constituição de 1988, de oito anos de governo FHC com avanços institucionais e de estabilidade da moeda, algo muito importante apesar de uma pauta econômica neoliberal, e de 12 anos de governos do PT com Lula e Dilma com avanços sociais inegáveis em todas as áreas, ninguém acreditava que o Brasil pudesse retroceder com um golpe parlamentar, midiático e de parte do judiciário e do Ministério Público, apoiado pelo capital financeiro e por agentes estrangeiros intervindo em assuntos domésticos do Brasil.
O golpe, hoje comprovado, contra a presidente Dilma foi seguido pela prisão ilegal do candidato que estava à frente nas pesquisas para ganhar a eleição de 2018. A retirada golpista de Lula do cenário político viabilizou a chegada à presidência do neofascista Bolsonaro, que teimou em pregar e agir pela destruição das instituições democráticas e promoveu um retrocesso nos direitos sociais, com a volta do Brasil ao mapa da fome, recordes nas taxas de desemprego, roubo do patrimônio nacional, com a privatização de partes da Petrobras e da Eletrobras inteira, e reformas que retiraram direitos dos trabalhadores.
Compreendemos que a História brasileira não tem um desenlace previsto, nem se desenvolve necessariamente rumo ao desenvolvimento ou ao esclarecimento político. Assim como a História humana teve e tem avanços e recuos, e um momento de progresso e superação não é garantia para evitar retrocessos catastróficos no futuro, no Brasil não é diferente. A partir dessa premissa, entendemos que o atual governo Lula foi formado como uma frente ampla para evitar o aprofundamento do neofascismo e do neoliberalismo no Brasil, que rapidamente evoluiria para um processo ditatorial, como agora ficou provado nas investigações dos golpistas do grupo bolsonarista.
Foi correto o movimento feito em 2022 para derrotar o bolsonarismo, mas assim como no 8 de janeiro de 2023 houve uma tentativa de golpe, malograda naquele momento, continuamos a sofrer um cerco mais amplo, que já colocou em marcha o golpe contra Lula. Afinal, a história brasileira é uma sucessão de golpes, frustrados como o de 1954, quando Getúlio adiou o golpe com uma bala no peito, ou bem sucedidos, como o de 1964. Além de compreendermos o momento histórico de maneira adequada, para que não incorramos em erros novos ou antigos, precisamos de uma estratégia correta para combinar ação institucional com iniciativas na sociedade, nos movimentos sociais, na esfera da comunicação e em diversos espaços político-institucionais para construir a supracitada “democracia substantiva”.
Democracia substantiva que não se limite à Democracia formal, liberal, não apenas para assegurar os direitos civis e políticos, direitos importantes, mas insuficientes. Devemos avançar para garantir os direitos sociais, econômicos e culturais para a classe trabalhadora ter dignidade em sua vida; direitos contra todas as formas de violência e discriminação de gênero, raciais e de orientação sexual; direito ao meio ambiente sustentável para impedir a extinção da civilização como a conhecemos; e a defesa do Estado contra as diversas organizações do crime organizado que se enraizaram e se defendem nas forças políticas de extrema direita ligadas às milícias, facções criminosas que controlam grande parte da classe política e do orçamento público.
Assim como Dilma sofreu a partir de 2013 um processo de desestabilização por ter baixado os juros da Selic do Banco Central (BC), e assim ampliou o orçamento social, o Programa de Aceleração do Crescimento, a criação e ampliação de Universidades e institutos federais, hoje Lula sofre um cerco do capital financeiro alicerçado no BC, cujo presidente, Campos Neto, que ele não indicou, é um sabotador que, com altas sucessivas de juros já está destruindo a retomada do crescimento econômico. Temos hoje o menor nível de desemprego da série histórica, um crescimento da renda dos trabalhadores e uma diminuição significativa do número de pessoas abaixo da linha da pobreza, um quadro econômico muito bom. Entretanto, a elevação dos juros pelo BC é sem motivo, pois não havia nem há um risco de explosão inflacionária e os preços que aumentaram não serão refreados pela diminuição do ritmo da atividade econômica ou do consumo. Há simultaneamente outra sabotagem com a especulação do “mercado”, que artificialmente puxou o dólar para cima e fabricou inflação, enquanto o BC olhava complacente esse movimento especulativo patrocinado por ele mesmo e sem usar o instrumento para segurar o dólar com as reservas cambiais.
Em outra frente, no Congresso, a correlação de forças é muito ruim. O governo Lula tem menos deputados do que o necessário para barrar um processo de impeachment, e já sabemos que não é necessário ter motivo legal para promover a afastamento do presidente, como já aprendemos com o golpe contra Dilma em 2016. O governo tem que negociar para evitar o pior, e infelizmente quando Lula colocou pautas que permitiriam uma participação do movimento social para tentar mudar a correlação de forças na institucionalidade, não houve uma reação progressista, o que leva o governo a ter que fazer concessões.
Lula atacou diversas vezes a política do BC de juros altos e as centrais sindicais e demais movimentos sociais não reagiram. Lula apresentou a proposta de reforma tributária da renda progressiva em 2023, mas não houve apoio social e o governo foi obrigado a dividir a reforma para aprovar apenas a simplificação dos tributos, o que foi muito importante também para a Economia do país. Agora, novamente, após meses de pressão do “mercado” /Faria Lima/capital financeiro que queria o congelamento do salário mínimo indefinidamente, a destruição dos pisos constitucionais da Saúde e da Educação e a desvinculação dos benefícios previdenciários do salário mínimo (SM), o governo federal não cedeu a essas exigências. Já se intensifica o cerco midiático e parlamentar contra Lula, com uma PEC paralela da direita no Congresso que quer acabar com esses direitos constitucionais e com chantagens da maioria parlamentar.
Novamente será preciso ter movimento social para barrar retrocessos e defender uma proposta muito interessante, que é a isenção do imposto de renda para quem ganha até 5 salários mínimos e o pagamento de imposto das maiores rendas, inclusive de lucros e dividendos das empresas, que hoje praticamente são isentos. É uma bandeira muito interessante, pois beneficia uma maioria social e responde a uma demanda de um segmento da renda que, em grande parte, tem votado no bolsonarismo. Será uma oportunidade de fazer a disputa política na Sociedade, mas apenas com o governo atuando politicamente sem ação dos movimentos sociais e entidades da sociedade civil fica difícil ganhar essa disputa.
Por outro lado, alguns segmentos que se reivindicam progressistas ainda não perceberam essa correlação de forças e os interesses de cada ator, e acabam atacando o governo Lula, sem nem perceber que o poder do orçamento federal hoje está preponderantemente no Congresso Nacional. Este destina metade dos recursos discricionários do orçamento para emendas parlamentares, comprometendo a execução do programa do governo que foi aprovado nas urnas, e com gastos de baixa qualidade e pouca efetividade, na maioria das vezes.
É necessário saber quem é o adversário: o capital financeiro (“mercado” /Faria Lima), uma parcela do Congresso fisiológica e golpista que coloca seus interesses acima dos interesses nacionais e não tem compromisso com as políticas públicas nem com a democracia, a mídia corporativa, os interesses neocolonialistas e imperialistas que não querem o Brasil soberano e protagonista com os BRICS, com a América Latina, a África e a Ásia. É importante ver a necessidade de coordenar as pautas progressistas do governo, já supracitadas, com a mobilização social, inclusive para tentar até elevar os ganhos da classe trabalhadora. Torna-se imprescindível evitar alguns erros: 1) atacar o governo Lula como se fosse a causa dos problemas sociais, pois estamos numa correlação de forças desfavorável, tentando reconstruir o país e os direitos sociais e com forte desvantagem no Congresso, na sociedade, na mídia e no plano internacional; 2) não mobilizar para reivindicar direitos frente ao Congresso e outros atores, nem participar do debate sobre orçamento ou sobre as propostas econômicas que podem beneficiar os trabalhadores, acreditando que essa tarefa é apenas do governo; 3) acreditar que o “jogo democrático” correrá sem tentativas de golpes, seja por agentes internos no Brasil, como está explícito nas investigações das tentativas bolsonaristas; por agentes da Faria Lima que sabotam a economia e tentam impor um ajuste fiscal de destruição das políticas sociais e de desenvolvimento que o governo Lula tenta implementar; ou agentes externos que já declararam que querem desestabilizar os governos da América Latina, como o presidente eleito dos Estados Unidos já se pronunciou.
Há problemas do governo, certamente. A estratégia de comunicação do governo poderia ser muito melhor, e esse ponto é fundamental. Em algumas partes do governo poderíamos estar melhor, como na relação do MEC com as universidades e institutos federais. Houve uma recomposição do orçamento em 2023 e o PAC das Universidades e Institutos em 2024, fatos muito positivos, mas o orçamento de custeio das nossas instituições federais poderia ter acompanhado o crescimento do orçamento global do MEC. Por outro lado, há pontos muito positivos, como o Nova Indústria Brasil (NIB), uma estratégia de reindustrialização verde e sustentável, que mesmo segmentos de esquerda ignoram, continuando a repetir que não há políticas públicas novas, outro grande erro.
A política de Ciência e Tecnologia está conseguindo recuperar os níveis de investimento de antes do golpe de 2016, e em sinergia com a NIB e as universidades podem levar o Brasil para um novo patamar. A política externa coloca de novo o Brasil com protagonismo importante junto aos BRICS, pela reestruturação das instituições da ONU, pela busca da paz e com a denúncia do genocídio que se abate sobre o povo palestino. Há um problema na política externa, que foi o encaminhamento dado à relação com a Venezuela depois das eleições daquele país. Por outro lado, as relações intensificadas com a China abriram possibilidades diplomáticas, geopolíticas e econômicas extraordinárias. Como salientamos, há pontos positivos e negativos, mas sem entender essa moldura, esse enquadramento mais amplo, fica difícil operar a política no plano nacional e internacional.
Edição: Lorena Andrade