Análise realizada pelo núcleo Opará Eleição do Observatório Opará da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf)
As eleições são momentos centrais para a reafirmação da democracia. Nelas, representantes da população são escolhidos para ocupar cadeiras na elite do poder político e tomar decisões que impactarão toda a sociedade. A relevância desses representantes tem sido amplamente estudada e analisada pela ciência política e pelas ciências sociais ao longo da história. A centralidade da representação política de pessoas negras também é tema de debate há mais de um século no Brasil, remontando ao período pós-abolição da escravatura e ganhando força a partir da década de 30 do século XX.
Em artigo para o Brasil de Fato - Rio Grande do Sul, intitulado “Representatividade negra no Legislativo municipal: como anda Porto Alegre e o RS?”, nós, do Opará - Observatório das Políticas Afirmativas Raciais - Frente Opará Eleições, destacamos os esforços que o Brasil empreendeu nas últimas décadas, em termos de normativas, para incentivar as candidaturas de pessoas negras e mitigar, ao menos em parte, a desigualdade racial na política. Um exemplo é a Resolução nº 23.605 de 2019 do Tribunal Superior Eleitoral, que regulamentou a gestão e distribuição dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), e definiu que 30% desses recursos deveriam ser destinados a candidaturas de mulheres e pessoas negras. A resolução também estipulou a proporcionalidade na destinação desses recursos entre mulheres negras, mulheres não negras, homens negros e homens não negros. No entanto, a plena adesão à Resolução nº 23.605 tem enfrentado desafios, especialmente devido às anistias concedidas às multas eleitorais aplicadas a partidos que descumpriram suas diretrizes. Em agosto de 2024, o Senado Federal aprovou a chamada "PEC da Anistia", que perdoou multas aplicadas aos partidos que não cumpriram as cotas de gênero e raça.
Em estudos anteriores do “Opará Eleições” foi possível ver que, no geral, em relação às candidaturas de pessoas negras, houve um equilíbrio entre a distribuição demográfica racial da população e a distribuição racial do número de candidaturas. Ou seja, o número de candidatos negras e negros, na maior parte dos municípios, foi proporcionou à população de negras e negros na localidade. Na Bahia, por exemplo, não houve nenhum município com sub-representação de candidatos negros, evidenciando o interesse da população negra de lançar-se na concorrência de vagas no centro das decisões municipais. A recepção pelos partidos pode, em alguma medida, ser apenas um instrumento de acesso com caráter demagógico sem gerar nenhum empenho para o fortalecimento da representatividade social no legislativo local.
Observando o resultado ao longo do tempo, podemos notar que persiste uma discrepância significativa entre o número de pessoas negras que se candidataram e aquelas que foram efetivamente eleitas. Note que isso colabora com nossa percepção de que os partidos e elites partidárias pouco empenham esforço para a pluralidade e representatividade social na política. O caminho para o sucesso eleitoral é marcado por obstáculos adicionais para minorias sociais, como dificuldades na captação de recursos para campanha e na conquista de visibilidade. Além disso, o espaço para novos atores políticos é restrito, não sendo, necessariamente, um entendimento de necessidade de renovação de ideias e de pensamento.
O caminho para o sucesso eleitoral é marcado por obstáculos adicionais para minorias sociais, como dificuldades na captação de recursos para campanha e na conquista de visibilidade
A realidade da capital baiana mostra o quanto a eleição de pessoas negras, em pleno século XXI, ainda é um desafio. Salvador em 2024 elegeu para seu legislativo 48,84% de brancos(as) e 51,6% de negros(as) (18,6% de pretos(as) e 32,56% de pardos(as)). Embora pareça positivo, em 2020, as proporcionais de Salvador elegeram 30,23% de vereadores(as) brancos e 69,77% de vereadores(as) negros - 30,23% de pretos(as) e 39,53% de pardos(as). Ou seja, houve uma queda de 11,6 pontos percentuais de pessoas pretas eleitas e uma adição de 18,61 pontos percentuais de vereadores brancos. Tal situação é alarmante, considerando que 83,2% da população de Salvador se autodeclara negra, sendo a maior proporção da população preta do país.
Quando analisamos o estado da Bahia como um todo, a situação é um pouco mais animadora. Para fazer essa análise utilizamos o Índice de Equilíbrio Racial (IER), construído por Sérgio Firpo, Michael França e Alysson Portella. Esse índice nos permite pensar se a composição racial da população (brancos e negros), está espelhada na composição dos legislativos municipais. O IER possibilita que tenhamos uma abordagem ajustada às características demográficas de cada município. Minimamente, o que se espera é que os grupos representem proporcionalmente o seu tamanho populacional, o que levaria o indicador a se aproximar de zero.
: : Leia: População reconhece racismo na política, mas não apoia ações afirmativas para reduzir desigualdade
Nesse artigo também consideramos que sobre representação de pessoas negras nos legislativos dos municípios, ou seja, uma maior proporção de pessoas negras eleitas em relação a sua representação demográfica, não seria um problema e são vistos como parte de uma reparação histórica, dado o longo período de exclusão política desse grupo.
O IER é valorado de forma escalar, que situações de sub-representação, tende a -1, e em casos de maior representação (ou "sobrerrepresentação"), o índice se aproxima de 1, no gráfico 1. Aqui se dividiu o IER em subcategorias:
: : Gráfico 1 - Escala do IER de Categorias do Racial (Sobrerrepresentação)
A Bahia nas urnas: O caminho para o equilíbrio representativo racial
Ao analisarmos individualmente as subcategorias do Índice de Equilíbrio Racial (IER) ao longo das últimas três eleições municipais na Bahia, há fatos relevantes sobre o comportamento das candidaturas de pessoas negras. O gráfico 2, apresentado abaixo, ilustra variações graduais que merecem uma análise detalhada.
Observando o IER baiano para a porcentagem de sub-representação (a linha roxa) - diferença negativa da quantidade de pessoas negras eleitas em relação a população declaradamente negra - observamos que essa subcategoria tem diminuído gradativamente ao longo do tempo. Em 2016, primeiro ano da série histórica analisada, o índice de sub-representação alcançou 24,1%; em 2020, caiu para 8,4%; e, em 2024, chegou a 5,3%. Por outro lado, ao analisarmos a sobrerrepresentação (linha amarela) — que representa a diferença positiva entre a quantidade de pessoas negras eleitas e a proporção da população declaradamente negra — também identificamos uma leve queda ao longo do período. Em 2020, o índice registrou 2,8%; em 2022, reduziu-se para 2,4%; e, em 2024, atingiu 1,9%. Os dados revelam que tanto a sub-representação quanto a sobrerrepresentação da população negra em cargos do legislativo municipal vêm diminuindo de forma consistente. Esse movimento aponta para uma convergência gradual em direção a um equilíbrio representativo.
Dados revelam que tanto a sub-representação quanto a sobrerrepresentação da população negra em cargos do legislativo municipal vêm diminuindo de forma consistente
Todavia, o gráfico 2 também apresenta um dado relevante que merece reflexão: a proporção de equilíbrio representativo entre os candidatos negros eleitos e a população negra. A linha vermelha do gráfico ilustra esse fenômeno ao longo das eleições passadas. Em 2016, antes da entrada em vigor da resolução do TSE, o equilíbrio na Bahia era de 29,64%. Na eleição seguinte, primeiro pleito sob a vigência da resolução, esse índice subiu para 35,66%. Por fim, na eleição mais recente, atingiu 38,39%.
Esses números indicam uma trajetória de crescimento gradual na proporção de pessoas negras eleitas em relação à população nos municípios baianos ao longo das eleições municipais. Esse aumento pode ser explicado por alguns fatores, entre eles a própria resolução de 2019, que regulamentou a destinação de recursos do financiamento de campanhas a mulheres e pessoas negras, e o crescimento no número de pessoas que passaram a se autodeclarar negras. Também, não podemos descartar a possibilidade de uma mudança eleitoreira da autodeclaração de candidatos que, anteriormente, tivesse se considerado branco. Esse movimento também tem um impacto direto na convergência do índice para um cenário de equilíbrio. Isso pode ser identificado, com mais profundidade, na verificação da taxa de renovação dos representantes efetivamente eleitos.
: : Gráfico 2 - (%) Evolução das Condições Representativas na Bahia nas eleições ao legislativo municipal entre 2016 e 2024
Além da análise temporal, também é possível observar a distribuição espacial do índice de representação nos municípios baianos. Nos três mapas apresentados abaixo, a cor vermelha mais intensa indica sobrerrepresentação (1), a cor azul aponta sub-representação (-1), e o amarelo claro representa equilíbrio (0).
Nas eleições de 2016, o norte e o oeste da Bahia apresentavam uma concentração maior de municípios em situação de sub-representação. Em 2020, houve uma ampliação da sobrerrepresentação, que passou a abranger quase todas as regiões, com destaque para a região central do estado. Já na eleição mais recente, observamos uma predominância de equilíbrio em quase todas as áreas.
Um destaque importante é Salvador, a cidade brasileira com a maior população declaradamente preta. Em 2016 e 2020, a capital apresentava uma condição expressiva de sobrerrepresentação, mas em 2024 essa situação foi substituída por um cenário de equilíbrio representativo, o que a fez perder representantes negros, como chamamos atenção anteriormente.
: : Mapa - Distribuição Espacial das Condições Representativas na Bahia nas Eleições ao Legislativo Municipal entre 2016 e 2024
Os dados mostram que, apesar do caminho a percorrer, a Bahia se move em direção a uma democracia mais representativa e inclusiva, pelo menos em tese. Esse avanço pode representar não apenas mudanças estruturais, mas também reafirma a importância de políticas públicas e do protagonismo negro na construção de uma política mais igualitária. É uma história de progresso gradual, mas carregada de significado, que inspira não apenas a Bahia, mas o Brasil como um todo.
Referências bibliográficas:
FIRPO, Sergio; FRANÇA, Michael; PORTELLA, Alysson (2022). Relatório de Equilíbrio Racial - 2022. Texto para Discussão 13. Núcleo de Estudos Raciais: Insper, São Paulo.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Lorena Andrade