A Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), segunda mais antiga do país, ouviu, neste Novembro Negro, os clarins anunciarem a entrega da comenda Ubiratan Castro ao Obá de Xangô e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Muniz Sodré. Nesta quinta-feira (14), um dia de Xangô, a tradicional faculdade no bairro da Graça recebeu seu ex-aluno com grande festa para entregar-lhe a homenagem concedida pelo Sindicato dos Professores das Instituições Federais de Ensino Superior da Bahia (Apub) em parceria com a UFBA.
Nascido e criado na “boca do sertão”, em São Gonçalo dos Campos (BA), Muniz Sodré é pesquisador da comunicação e do jornalismo com vasta obra publicada, Doutor Honoris Causa pela UFBA, capoeirista e Obá de Xangô, título honorífico recebido no Ilê Axé Opô Afonjá. Na Academia de Letras da Bahia ocupa a cadeira 33, cujo patrono é Castro Alves, e que também pertenceu a Mãe Stella de Oxóssi e a Ubiratan Castro, historiador e um dos fundadores do Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da UFBA.
Sodré foi descrito por Clarisse Paradis, presidente em exercício da Apub, como um intelectual comprometido com um projeto democrático de país. “Um intelectual brasileiro que reconstrói, retirando do lugar do não dito, do escondido, as dinâmicas nacionais do racismo, para que possamos criar uma outra consciência coletiva fundamentalmente democrática”, afirmou em sua saudação de abertura da homenagem.
Universidade e comunidade
Após conceder sua bênção para o início da solenidade, a Iyalorixá Gilmara Santos lembrou as palavras de Makota Valdina de que não é possível construir conhecimentos universitários sem o contato direto com as comunidades. E exaltou a trajetória militante e intelectual do homenageado.
Em sua fala, Muniz Sodré pediu agô (licença) para falar de sua própria trajetória naquela faculdade e na vida adiante, um exemplo daquilo que defendia Makota Valdina: intelectualidade e comunidade em conjunto.
“Minha primeira universidade foi o jornal, mais precisamente o Jornal da Bahia, onde ouvi falar pela primeira vez de um alemão chamado Carlo Marx que me encantou”, contou Sodré. O extinto jornal, que pertencia a João Paulo Campos, era, nas palavras de Muniz Sodré, “um antro de comunistas”, responsável por lhe dar as primeiras lentes para ler o mundo. As lentes seguintes, seriam a do Direito, adquiridas ali na UFBA.
Essas primeiras lentes, comunistas e das ruas da cidade de Salvador, lhe ajudariam a ler criticamente a ciência que lhe era ensinada, como um “direito pomposo que só dissimulava a injustiça dos bem nutridos para com os escravos da fome”, afirmou. Para Sodré, naquele tempo, “a faculdade só tinha olhos para a consolidação daquilo que a política dominante considerasse justo”.
Passados 40 anos desde a última vez em que esteve ali, Muniz Sodré foi descrito por Jamile Borges, atual diretora do CEAO-UFBA, como o intelectual negro cujo legado formativo possibilitou que outras pessoas negras se tornassem diretoras de centros e faculdades na UFBA, forçando mudanças no cenário da produção intelectual da Bahia e do Brasil.
“Hoje é um dia de festa, de celebração para nossos ancestrais e também para nossa comunidade. É um momento de celebração e conquistas, não apenas conquistas acadêmicas ou profissionais, mas de uma vida dedicada aos estudos das populações afrobrasileiras, do racismo, do antirracismo”, disse a diretora do CEAO.
Questão racial
Ao descrever a importância da comenda Ubiratan Castro e de prestar homenagem a Muniz Sodré, o diretor acadêmico da Apub, Ponciano de Carvalho, defendeu a centralidade da questão racial para a democracia brasileira. “A centralidade de um debate que não é identitário no Brasil de 55,5% de população negra, e menos ainda na Bahia, que possui mais de 80% de sua população negra”, lembrou.
Ele criticou a nova onda teórico-política brasileira que tem atribuído às lutas dos direitos de pessoas negras o título de luta identitária. “Eu tenho que me lembrar de outro ex-aluno dessa casa, Milton Santos, que dizia que quase não havia cidadania no Brasil, o que havia de fato, e ainda há, é uma democracia de privilégios”, afirmou.
Lembrando o último livro publicado por Muniz Sodré, O Fascismo da Cor, Ponciano de Carvalho explicou que cor e raça tornaram-se marcadores de diferenças tão fundamentais que se converteram em uma linguagem determinante para a nossa fragilidade democrática. “Uma linguagem que não pode ser mais marginalizada pela filosofia política. E é importante se falar isso na faculdade de Direito, pela teoria do Direito. Uma linguagem que não pode mais ser marginalizada pela universidade pública brasileira”, finalizou.
Edição: Alfredo Portugal