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Coluna

Como deslocar "podar" para "poder"?

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Podar pode ser algo que possibilita o crescimento e a revitalização de algo, mas também pode ser traumático quando despotencializa, despedaça o sujeito - Joanbanjo
O que estamos podando em nós?

Anália: parece que tenho um disco rígido, riscado, na cabeça que fica se repetindo
Lia: Não sei me relacionar comigo mesmo, não sei lidar com a vida, com tudo que há de ruim e de bom também, não sei pedir ajuda... eu simplesmente não sei
Roberto: Me acostumei tanto com o que não dá certo que quando dá eu não sei o que fazer, acho que não mereço
Márcia: Eu vivia com medo de ir para os lugares, de dizer o que eu queria, deixava de fazer as coisas por medo, vergonha. Era uma poda antes de nascer. Pergunto: o que a palavra ‘poda’ lhe remete? E ela responde: a um aborto...
(Fragmentos da clínica) (1)

Como deslocar “podar” para poder? Podar pode ser algo que possibilita o crescimento e a revitalização de algo, mas também pode ser traumático quando despotencializa, despedaça o sujeito. O que estamos podando em nós? Nos últimos dias escutei coisas que me fizeram pensar nas experiências traumáticas e como estas afetam a nós e nossas relações. Não faz muito tempo que saímos de uma pandemia. Para muitas pessoas os efeitos daqueles dias ainda reverberam no modo como lidam com a vida. Uma separação, uma perda significativa, uma vida precarizada e restritiva, discriminações e preconceitos podem produzir traumas e sintomas dos mais variados para lidarmos com o sofrimento intenso. Dependência de substâncias psicoativas, compulsões, isolamento autoimposto, comportamentos considerados delinquentes, não responsabilização pelos próprios atos, dogmatismos e ideia de que não precisamos de ninguém, como espécie de defesa contra decepções. Estes são alguns exemplos disso.

Para a psicanálise, o trauma constitui o sujeito, a repressão primordial é o que nos marca pela linguagem, pela entrada na cultura, o desprazer maior que o prazer, pelas rupturas contingentes que aproximam o sujeito da noção de sua condição faltante e a do outro também (2). Porém, há traumas que são mais graves e que podem produzir adoecimentos e comprometimentos na formação dos sujeitos.

O trauma, a grosso modo, pode ser considerado como sofrimento decorrente de acontecimentos reais ou imaginados vivenciados no passado, cuja carga emocional e psíquica é bastante intensa, a ponto de não sentirmos dor ou coisa alguma. Pode também ser considerado como a quebra de confiança no ambiente de nossas principais sociabilidades, em que se estabelece uma falha no cuidado às nossas necessidades básicas, no sentido de criar estados de confusão, de modo que nos sentimos desprotegidos, desamparados e temos dificuldades em organizar as nossas defesas, como diz Winnicott (3). Levamos um tempo considerável para responder aos acontecimentos de outro lugar que não da dor, mas também é preciso condições para isto.

A ideia de ambiente suficientemente bom colocada por Winnicott e de como o trauma se dá, me remete à noção de crime dos Banto-Kongo. Em que a comunidade é responsabilizada pelos crimes cometidos por um sujeito, pois não são atos individuais, e sim “resultado de um estado psicológico interno trazido por um indivíduo desde a infância, acumulando sobretudo durante o período de crescimento, quando a criança adquire padrões sociais. Esse estado lhe é dado por intermédio do seu ambiente social, cultural, físico e sistêmico” .

O desamparo em relação às necessidades básicas e o desamparo social podem resultar em estados psicológicos traumáticos, transmitidos intergeracionalmente também. Quando estamos com o sujeito em análise, estamos com o pai, a mãe, os antepassados, os amores, a comunidade a qual pertencemos, todos aqueles que, pelo discurso, pela palavra, lhe constituem como sujeito. Não há uma singularidade pura. Somos sujeitos falantes, as palavras que nos aprisionam na ferida, nos estados psicológicos da dor, de um determinismo enquanto meio de vida, sempre voltam, sempre nos colocam naquilo que parece se repetir em nossas histórias. E é falando em análise que saímos das fixações, nos deslocamos de um jeito de ser e estar no mundo para outro. Do poder dizer e agir.

Amina: tem uma coisa presa na garganta
Analista: uma coisa presa na garganta? O que precisa sair?

Amina: eu queria chorar, eu queria poder gritar
Analista: chore, grite. Aqui você pode fazer isto
Amina: as pessoas vão ouvir, vão se assustar, eu não quero chamar atenção
Analista: não se preocupe com quem está lá fora, eu estou aqui com você, se precisar gritamos juntas
Amina: não precisa, eu vou tentar sozinha (depois de um longo silêncio, ela grita e desaba em lágrimas demoradamente)
Analista: o que saiu da garganta?
Amina: tanta coisa presa no peito, dói. Como é difícil dizer
Analista: como é difícil dizer o quê, Amina?
Amina: eu sou mesmo rígida com as pessoas, manipulo as situações para me proteger, sempre dou um jeito de terminar sozinha, eu rejeito para não ser rejeitada, tenho medo de ser rejeitada. Meu deus, quanto tempo levei pra entender isso
Analista: E como você está se sentido agora depois de ter chorado, gritado e dito isso?
Amina: estou leve, parece que tirei uma tonelada das costas, mas ainda não me sinto bem
Analista: parece angustiante, mas você não está sozinha, estou aqui. (Breve silêncio) RE-JEI-TA-DA, vamos brincar com essa palavra? Quantas palavras cabem nela, quantas palavras podemos criar com ela? Quer começar?
Amina: RE-AJEITADA
Analista: o que pode ser RE-AJEITADA?
Amina: alguém que se RE-ARRANJA, que se RE-FAZ
Analista: Hum! Que tal DESARRANJO? (Amina ri e eu rio junto com ela). Pode ser RE-JEITO também, voltar e fazer de outro JEITO, de responder a uma situação de um outro jeito de pensar, sentir, de ver, de dizer outras palavras
Amina: eu gostei disso

Toda demanda é demanda de amor, amar é dar aquilo que não se tem, assim disse Lacan. Isto quer dizer que para amar é preciso reconhecer que temos necessidade do outro e comunicar que o outro nos falta. “Os que creem ser completos sozinhos, ou querem ser, não sabem amar. E, às vezes, o constatam dolorosamente. Manipulam, mexem os pauzinhos, mas do amor não conhecem nem o risco, nem as delícias” (5).

Quando escutamos uma pessoa em meio a tantas palavras, às vezes precisamos escutar o que parece inaudito: seu pedido de reconhecimento, sua demanda de amor. É preciso que a escuta seja esse manejo criador de uma ambiência segura, para que a pessoa manifeste aquilo que lhe parece difícil de dizer, que a impede de agir. No caso acima, que o medo da rejeição se desloque para um RE-AJEITAR, um sentir e se relacionar de outro jeito que não produzindo e reproduzindo a própria rejeição. Que se desloque do “podar” para o “poder” ser outra coisa.

(1) Os nomes são fictícios para preservar a identidade das analisantes.
(2) FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 17: Inibição, sintoma e angústia, O futuro de uma ilusão e outros textos (1926-1929). Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
(3) Donald Woods Winnicott, pediatra e psicanalista cujas análises sobre a formação do sujeito se davam a partir das relações precoces do bebê, seu ambiente e das condições suficientemente boas para o seu desenvolvimento e manifestação de seus potenciais.
(4) FU-KIAU, Bunseki. O livro africano sem título: cosmologia dos Bantu-Kongo. Tradução: Tiganá Santana. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2024.
(5) Entrevista de Jacques-Alain Miller realizada por Hanna Waar e publicada originariamente na revista “Psychologies Magazine”, de outubro 2008 (n° 278). Tradução: Maria do Carmo Dias Batista. Disponível em: https://www.sbpsp.org.br/blog/amor-e-psicanalise/

Edição: Gabriela Amorim