Acometido pela doença de Alzheimer, Cícero optou pela morte assistida, permitida em alguns países
A morte de Antonio Cicero Correia, de 79 anos, compositor, poeta, crítico literário, filósofo e escritor, na Suíça, dia 23 de outubro, gerou muitas discussões polêmicas na sociedade que repercutiram na mídia.
Acometido pela doença de Alzheimer, Cícero optou pela morte assistida, permitida em alguns países, a partir de uma concepção do “direito a uma morte digna, com qualidade”. Vale ressaltar que a eutanásia é um procedimento distinto da morte assistida, nem sempre diferenciada na cobertura midiática, como ocorreu nesse caso.
O tema da morte sempre é muito sensível. Nossa tradição religiosa, especialmente de matriz judaica cristã, associa o morrer a muitos valores que induzem ao medo e a questionamentos que trazem um universo subjetivo de angústia. Não temos espaços seguros em casa ou na escola para debater de forma franca sobre essas crenças, a dor do luto nas perdas de entes queridos, nem sobre outras vertentes da religiosidade quanto à imortalidade do espírito e à reencarnação.
Independente da orientação religiosa de cada um, direito assegurado legalmente num contexto do Estado laico, é preciso refletir sobre a morte numa perspectiva de valorização da vida, sem apologia, romantização ou julgamento moral sobre os casos de suicídio. Aliás, as atividades promovidas no “Setembro Amarelo” visam chamar atenção para a prevenção do suicídio, um alerta para os cuidados individuais e coletivos com a saúde mental. Trata-se de um grave problema de saúde pública e deve ser abordado com responsabilidade, sem moralismo.
Não vem ao caso agora explorar os aspectos psicossociais que envolvem a morte, em qualquer circunstância, numa lógica maniqueísta de bem e mal, ou de julgar comportamentos humanos como juízes.
Um aspecto que me chamou atenção nesse episódio foi a repercussão da carta deixada por Cícero explicando suas motivações para a decisão. Alguns veículos de comunicação exploraram o teor do documento, em busca da audiência, bem ao gosto do sensacionalismo que transforma qualquer notícia (e às vezes fake news) em mercadoria lucrativa. Lembramos que conteúdo jornalístico de qualidade tem valor, não preço, e que a informação é direito, instrumentaliza o cidadão para decisões cotidianas. A Comunicação é uma política pública e as concessões para rádio e TV pelo Estado carecem de maior controle, afinal o interesse público deve ser priorizado.
Especialistas alegam que a “glamourização” desses casos pode causar efeitos como gatilhos, elevando as estatísticas de suicídios. Desconheço pesquisas e dados estatísticos confiáveis, mas, o fato é que no período pós pandemia a incidência de transtornos mentais aumentou, depressão e ansiedade são frequentes inclusive entre jovens.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou em 1999 um manual para profissionais da mídia com recomendações normativas sobre a cobertura em casos de suicídio. No Brasil, o Projeto de Lei 1970/2023, em tramitação na Câmara Federal, inspirado nesse manual, pretende regulamentar regras para a produção jornalística sobre o tema. Estão previstas normas como não divulgar cartas de suicidas, método utilizado para a morte, além da obrigatoriedade de prestar informações sobre os serviços de suporte psicológico e valorização da vida, inclusive com previsão de multa para infratores. A proposição parlamentar rende polêmicas que envolvem os riscos à censura e tem defensores e opositores.
O fato é que os meios de comunicação, cumprindo sua importante função social, não podem mais tratar assuntos como a morte, em suas mais diversas expressões, com superficialidade, omitindo informações úteis, condenando pessoas, famílias ou profissionais em seus atos. Essa lógica reduz e banaliza o tema, não contribui para um olhar humanizado e filosófico sobre o viver e o morrer.
A educação para a morte pode começar com diálogos honestos, sem mitificação ou espetacularização, que só corroboram com o pânico entre nós.
Encarar com seriedade a morte, e com a possível serenidade diante da finitude do existir, pode ser um bom exercício de viver intensamente, com autorresponsabilidade e compromisso social com a saúde mental coletiva.
Edição: Gabriela Amorim