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Não é coivara, é uma primavera de incêndios criminosos

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Mato Grosso é um dos estados mais atingidos pelas queimadas em 2024 - Marcos Vergueiro/Secom-MT
Os campos não estão coloridos, floriram chamas

Primavera é a estação do ano antes do verão, diversas espécies de plantas florescem. Entrou setembro e a boa nova ainda não veio1. O céu está cinza e não é pólen, é fuligem. Os campos não estão coloridos, floriram chamas, e as relações político-sociais andam mais quentes que o estio. Em um único dia brotaram tantas notícias ruins que foi preciso tempo para oxigenar a cabeça. Ardiam o peito e os olhos, foram tão sufocantes como as fumaças que pairam agora sobre algumas cidades.

Krenak, o céu caiu mesmo! Como diz o ditado popular: plantamos vento e estamos colhendo tempestade, brincamos com fogo e estamos nos queimando, literalmente. O canto inaudível das árvores deu lugar aos seus gritos nas queimadas criminosas em várias partes do país. Porque desaprendemos a escutá-las, mal escutamos seus brados e cá estamos nós, prestes a gritar por socorro quando nos faltar o ar novamente. Quem se julga proprietário da terra, se acha no direito de fazer o que bem entende, cercá-la e também matá-la. E no fim, mata a própria fonte de alimento e vida. Mata a mãe maior, a mãe ancestral porque incapaz de perceber-se para além de si mesmo.

Os dias não têm sido amenos e parece que o mundo é dos Narcisos que não viraram flor, sinto falta das orquídeas, violetas, bromélias, girassóis, dos pássaros, não está bonito, há mais espelhos do que pétalas. Ao que parece, a busca exacerbada pelo próprio prazer e satisfação do ego, em que se cria um mundo não compartilhável, leva a um impulso de morte que não se traduz na morte de uma autoimagem para dar lugar a um novo ser. Um mundo de sujeitos embotados, botões fechados, encerrados em si mesmos é um mundo em chamas, de céu cinzento e ar sufocante.

Esse prazer desenfreado não dá lugar à imagem fragmentada de si, do botão que se abre em flor e ao mundo compartilhável que possibilita conexões com aquilo que não é puramente o Eu e cria um nós. Algo fundamental para o sentimento de pertença, comunidade e que sustenta a experiência do sujeito neste mundo que deveria ser de mutualidade entre os diversos seres. E porque Narcisos acham feio o que não é espelho, como tiranos, põem fogo em tudo que não é parte de seu mundo embotado, apaga-se os limites que contornam nossas realidades emocionais, psíquicas e sociais. Narcisos sufocam a si mesmos na fantasia de que não há beleza, amor e satisfação fora de si, ou seja, na relação com a alteridade. Transplantados para o reino de Nero, Narcisos tomados pelos desejos desenfreados cometem abusos, matricídios, extravagâncias, tiranias e incêndios como se nada pudesse arrancá-los de seus impérios. Estar em tudo e em lugar algum, ter tudo e nada ao mesmo tempo, sujeitos com fantasia infantil de onipotência.

Existimos na experiência compartilhada, corpo-mente-ancestralidade. Não há sujeito sem que haja outro sujeito para mediar sua relação com o mundo. Ninguém nasce sozinho, nem vive sozinho, assim como também não morrerá sozinho. Precisamos uns dos outros, é fato. No princípio Ubuntu eu sou porque nós somos. E sermos nós é trabalho coletivo também. Sérgio São Bernardo2 e Tiganá Santana3, em suas leituras de Bunseki Fu-Kiau, nos provocam a pensar, enquanto comunidade, que responsabilidade temos em produzir tantos Narcisos? Tantos EUs desprotegidos e traumatizados pela experiência compartilhada de existir? Já que as condições de sujeitos exacerbadamente autocentrados são formados em um dado ambiente social, cultural, físico, sistêmico, espiritual afetados por radiações positivas e negativas? E como saímos dessa produção de vida individualizante, estéril, embotada, cinzenta, sufocante, mortífera e performática de falsa felicidade?

“Narciso quebrou
O espelho
A lente
Estilhaçada
Ficou linda”
 
Sérgio São Bernardo

 

1 Referência à música Sol de Primavera de Beto Guedes. Composição: Ronaldo Bastos / Alberto De Castro Guedes.
2
Sérgio São Bernardo. Direito e filosofias africanas no Brasil: ancestralidades, ubuntuidades e o pensamento Kalunga como formadores do repertório ético-jurídico brasileiro.
3 Bunseki Fu-Kiau. O livro africano sem título: cosmologia dos Bantu-Kongo. Tradução: Tiganá Santana.

Edição: Gabriela Amorim