Bahia

Cultura afro

'O Muncab está aqui para contribuir para a ressignificação dessa narrativa racista', afirma diretora do museu

Em entrevista, diretoras falam sobre o papel cultural e político do Museu Nacional da Cultura Afrobrasileira

Salvador |
Cintia Maria e Jamille Coelho, diretoras do Museu Nacional da Cultura Afrobrasileira, em Salvador - Cristian Carvalho

O Brasil passou a contar com um Museu Nacional da Cultura Afrobrasileira (Muncab) apenas em 2009. Localizado em Salvador, cidade com maior população negra fora de África, o prédio foi fechado por um longo período e reinaugurado em novembro de 2023. Em quatro meses, recebeu a visitação de mais de 150 mil pessoas.

O acervo permanente do Muncab, único museu nacional no norte e nordeste, é formado por 400 obras, de diversos períodos históricos, dentre elas esculturas, gravuras, fotografias, joias, arte sacra e documentos que testemunham a estética africana nas artes visuais brasileiras. No entanto, o que tem atraído tão grande público são as exposições temporárias que têm possibilitado o acesso à arte histórica e contemporânea afrodiaspórica.

Atualmente, o museu é dirigido por duas mulheres negras, Cintia Maria e Jamille Coelho. Entrevistadas pelo Brasil de Fato Bahia, elas contaram sobre a importância do museu para a cultura brasileira e projetos futuros  nos próximos anos, o Muncab deve se tornar um complexo cultural, com dois novos prédios. Também falam sobre a exposição “Raízes: começo, meio e começo”, com curadoria de Jamille Coelho, em cartaz desde fins de julho, com mais de 200 obras de 80 artistas negros brasileiros e estrangeiros.


Muncab foi reinaugurado em novembro de 2023 e, em quatro meses, recebeu 150 mil visitantes / Cristian Carvalho

Brasil de Fato Bahia - Eu queria começar te perguntando o que é o Muncab? O que é esse museu?
Cíntia Maria - Falar do Muncab me emociona, porque é um museu que está aqui para contribuir para a ressignificação de uma narrativa racista que foi criada durante muito tempo. Ele contrapõe todas essas histórias que foram contadas. E é um museu que valoriza a arte e os artistas negros, que valoriza as manifestações culturais afrobrasileiras, que tem essa conexão com os países do continente africano.

É um museu muito importante, porque pode contribuir para combater o racismo também. A gente o vê desse ponto de vista, como uma instituição que trabalha as questões de educação de forma inter e transdisciplinar. E tem um papel muito importante no sentido de valorizar o trabalho dos artistas negros, de mostrá-los não como uma questão de moda, mas sempre mostrando essa produção e a diversidade de um ponto de vista que não seja racista.

No Brasil, e na Bahia não é diferente, tem-se um senso comum de que as pessoas não gostam de cultura, não acessam cultura. Mas, em quatro meses o Muncab teve 150 mil visitantes. Como que a gente explica isso?
Cíntia Maria - Bom, as pessoas têm uma identificação muito grande com o Muncab e com o que está sendo exposto aqui. As pessoas se sentem acolhidas, têm uma relação de pertencimento muito forte com a instituição e com tudo o que tem sido produzido aqui. O Muncab vive cheio!

A gente tem turistas, um grande número de pessoas também daqui de Salvador visitando, todo mundo convivendo e tendo essa experiência, com a exposição, com a cafeteria, com a loja... porque a gente pensa o Muncab como um todo. Então, na cafeteria tem um painel que fala da origem do café na Etiópia, as gestoras do café são todas empreendedoras negras. A gente tem a loja pop-up da Mônica Anjos, que é uma estilista negra. Tudo no Muncab é pensado, desde o plano museológico, que é uma coisa mais técnica, até essa relação mesmo com o público e tudo o que a gente coloca à disposição.


Cíntia Maria: Muncab defende a arte e os artistas negros / Alfredo Portugal

E quais são os projetos futuros para o Muncab?
Cíntia Maria - A ideia é que esse seja o primeiro prédio e que o Muncab seja um complexo. Tem [a previsão da] reforma do prédio da Assistência Pública, que está aqui em frente, que vai funcionar como museu-escola, porque para a gente o processo de educação é um importante. A gente pensa, o museu também, como essa ferramenta. E aí nesse prédio a gente vai ter um restaurante, uma loja, várias salas de aula, inclusive sala para aula de corpo, residência artística, ateliês colaborativos, o administrativo passa para lá.

E esse prédio aqui vai ser o prédio de dinamização. Então, as exposições, geralmente de curta duração, vão ficar nesse prédio e vai ser construído um novo prédio aqui ao lado, em que a gente pretende trabalhar com as tecnologias imersivas, porque a gente quer conectar com a juventude e também com as novas formas do fazer museológico. Esse outro prédio, com 10 andares, vai ter um cineteatro, pensando do grupo residentes de dança e de teatro. Para além disso, cada andar vai ser destinado a exposições de longa duração. Um andar vai ser para exposições internacionais do continente africano, e nos outros andares a gente vai falar sobre a dança afro, sobre a música afrobrasileira, sobre a literatura, esportes, gastronomia, moda...

A gente vai trazer essas exposições de longa duração para contar um pouco mais sobre a história a partir dessas linguagens. Ou seja, uma relação diferente desse prédio aqui, que tem um viés mais contemporâneo.


Muncab recebeu 150 mil visitantes em quatro meses / Luan Teles/Secult-BA

E a gente busca também, através dos processos de educação, contribuir para algumas mudanças. Então, a gente tem alguns projetos, por exemplo, que envolvem a saúde mental dos artistas, porque a gente quer os artistas vivos. O nosso maior patrimônio é a vida e as pessoas. A gente tem projeto para viabilizar a venda desses trabalhos, trazendo galeristas, curadores, apresentando o trabalho desses artistas para o mercado das artes. Tem também cursos de formação preparando os artistas para os editais. Então, o Muncab trabalha com as artes visuais, mas, além disso, acaba trabalhando com uma série de outras questões que importantes, que estão contribuindo com essas mudanças.

Nas filosofias e nas cosmopercepções não ocidentais não se entende o tempo como uma linha reta, não é?! Qual o impacto de pensar um museu em um tempo que não é linear?
Cíntia Maria - É um desafio, mas é muito bacana porque a gente constrói tudo de uma forma muito cíclica também, né? A gente tem uma escuta muito ativa aqui no Muncab. Então, muito dos projetos, dos processos e tudo o que a gente vai construindo é feito a partir do que os diversos públicos trazem pra gente.

Às vezes eu fico me perguntando como em pouco tempo a gente conseguiu fazer tanto, sabe? Porque a gente já conseguiu ter uma relação com diversos países do continente africano, já fizemos uma primeira exposição internacional e estamos vendo várias outras exposições internacionais para virem para cá. Então, é um desafio, porque a gente tem que fazer as coisas dentro de um tempo também. Por exemplo, tem um plano museológico, que é para cinco anos. A gente tem algumas questões nesse sentido, mas é pensar esse museu pensando as transformações que ele pode possibilitar nas gerações presentes, nas gerações que vão chegar. Esse museu como um catalisador, eu acho.

Jamile Coelho – Como uma Encruzilhada. Uma encruzilhada que atravessa esse tempo que não é linear. Acho que o Muncab é isso. Dentro da perspectiva arquitetônica e da perspectiva de existência, ele é uma encruzilhada.


Jamille Coelho: o Muncab é uma encruzilhada, numa perspectiva tanto arquitetônica quanto existencial / Cristian Carvalho

Qual que tem sido o papel das exposições na história recente do Muncab, pós-reinauguração?
Cíntia Maria - É exatamente conectar essa produção artística e diversa, incrível dos artistas negros que a gente tem com o público e com o mercado das artes. A gente tem três principais papéis com as exposições, que é com os artistas, com o mercado das artes e com o público. E nessa relação dos artistas com o público e do trabalho artístico eu acho que é muito de desmistificar, de contribuir para acabar com as questões relacionadas ao racismo.

A cultura afrobrasileira foi e é perseguida ainda hoje, por conta da criminalização que foi feita. E existiu aqui [em Salvador] um museu, que ficou conhecido como o Museu de Nina Rodrigues [Museu Antropológico Estácio de Lima], que cumpriu esse papel de falar que a cultura afrobrasileira tinha um viés de crime. A Delegacia de Jogos e Costumes também foi muito importante para todo o racismo que a cultura afrobrasileira sofre ainda hoje. Então, eu acho que o Muncab tem um papel também de reparação com relação ao combate ao racismo.

Esse tapete que está aqui logo quando a pessoa chega, às vezes é impactante, ele diz logo: Racistas não passarão! Ele já tem uma mensagem muito clara. Então, a todo momento o Muncab transmite as mensagens que ele quer passar. A mensagem que “o sonho não falha” [inscrito em outra obra em exposição], pra essa juventude que tá aí.

Eu acho que o Muncab trabalha reconstruindo imaginários, narrativas e criando possibilidades de existência e resistência para os artistas negros, que encontram dentro do mercado das artes ainda muito preconceito. Existe uma dificuldade muito grande de se entender o trabalho dos artistas negros, que muitas vezes, para sobreviver, produzem em série, para ser uma coisa mais barata. E por isso são colocados nesse lugar do artesanato e não da arte. O Muncab acaba trazendo, inclusive, várias provocações. A gente gosta muito dessa ideia da provocação, de provocar uma ação.

Nos últimos anos, tem se feito uma discussão sobre o papel dos museus no mundo. O Brasil, inclusive, conseguiu reaver peças pertencentes a povos indígenas brasileiros que estavam em museus europeus, cujos acervos, em grande parte, foram formados durante a colonização de países do Sul Global. Como você vê o papel dos museus hoje no mundo?
Cíntia Maria - Acho que o que os museus têm um papel importante no sentido de criar um diálogo com a sociedade, de trazer diversas provocações, de trazer questionamentos, de possibilitar essa interlocução da produção artística com a sociedade. Ele tem um viés também relacionado ao bem-estar. Então, por isso, a gente está pensando aqui também a saúde mental dos artistas. E a gente precisa ampliar também para a comunidade.

Aqui a gente pensa inclusive várias políticas públicas. A gente faz diversas provocações para o governo federal, estadual e municipal, no sentido de pensar políticas públicas nas artes visuais e do ponto de vista de pensar essa relação do Muncab com a comunidade mesmo. Porque os livros ainda não dão conta de contar essa história, e a forma como é contada a partir do trabalho artístico, às vezes desperta sensibilidades outras.


Obra compõe a exposição Raízes: Começo, Meio e Começo, em cartaz no Muncab / Luan Teles/Secult-BA

Para mim, foi muito impactante, por exemplo, ver na [exposição] “Um defeito de cor”, as pessoas que chegavam aqui naquele útero e que começavam a chorar e se emocionar de estar passando por aquele útero e ter aquela ideia de renascer de novo. Depois, na exposição “Reverberações” com aquele portal do retorno, que era a ressignificação do portal do não retorno. O museu traz também vários pensamentos filosóficos.

É esse trabalho mesmo de fazer essa conexão. Às vezes, a gente tem algumas exposições que têm um viés mais provocativo, outras mais histórico, outras com viés mais educativo. Mas, a gente sempre pensa no público. Todas as exposições que são concebidas aqui no Muncab pensam no público. Acho que é isso que nos norteia. Com essa perspectiva também de pensar a cultura e o museu como algo que não deve ser extraordinário, mas ordinário e cotidiano. E a gente tem um grande desafio. A gente tem essas 150 mil pessoas que passaram por aqui, o museu está cheio, mas a gente, quer ele cheio o tempo inteiro. Esse é um dos nossos grandes desafios, ter essa constância de público. Por isso a gente pensa o tempo inteiro e tudo para o público.

Por fim, queria pedir para vocês falarem um pouco sobre essa exposição que está em cartaz agora, “Raízes: começo, meio e começo”.
Jamile Coelho - Raízes nasce dessa ideia da gente falar que os livros de História sempre trouxeram ideias deturpadas sobre as nossas origens. A nossa linha do tempo, a nossa árvore parece que não existiu. O Atlântico corta qualquer cordão que a gente tem. E aí é um processo de ressignificação muito importante, a partir das comunidades de terreiro, que são os primeiros espaços de guarda dessas identidades partidas e dessa recriação nesse novo mundo.

E aí a gente começa a pensar: Quais são as nossas raízes? Aí a gente lembra de Makota Valdina, que dizia que nós não somos descendentes de escravos, nós somos descendentes de seres humanos que foram escravizados, e que vieram para cá e contribuíram de alguma forma com a formação da identidade nacional do nosso país. É fundamental a gente refletir sobre isso.

Raízes, de uma forma cíclica, conta todo esse processo de contribuição das nossas origens, da nossa reivindicação desse espaço da rua como um espaço também nosso, desse afrofuturismo que pensa o futuro, mas caminhando como um pássaro Sankofa, olhando para o passado. Olhar para as construções dessas memórias e dessas famílias negras, pensar na contribuição do Bembé do Mercado, como esse importante festival, o primeiro grande festival a celebrar a cultura negra na diáspora brasileira. Então, Raízes traz esse processo. É a árvore da memória, né? Voltar para o passado e lembrar da nossa história, da nossa origem e de toda a contribuição do povo negro para a construção da identidade desse país.

Edição: Alfredo Portugal