O julgamento pelo crime de feminicídio cometido contra a estudante quilombola Elitânia de Souza Hora aconteceu na última quarta-feira (31), quase cinco anos após a morte da vítima e depois de cinco adiamentos. O réu, José Alexandre Passo Góes Silva, ex-companheiro de Elitânia, foi a júri popular no Fórum Augusto Teixeira de Freitas, em Cachoeira (BA).
O crime aconteceu na noite de 27 de novembro de 2019, por volta das 22h40. Elitânia voltava de uma aula na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) acompanhada de uma amiga quando foi surpreendida pelas costas e morta a tiros por Alexandre, que não aceitava o fim do relacionamento.
Por volta das 8h da manhã, antes do início do júri, a frente do fórum foi tomada por ativistas, estudantes, professores, amigos e familiares da vítima e outros moradores de Cachoeira que seguravam faixas e cartazes em protesto exigindo justiça para Elitânia. A mobilização do ato foi articulada pelo Odara - Instituto da Mulher Negra e pela Tamo Juntas - Assessoria Multidisciplinar Gratuita para Mulheres em Situação de Violência.
“Convocamos a sociedade cachoeirana e região para o ato e para o júri, mas foi a memória de Elitânia que mobilizou e fez acontecer uma sessão lotada, do início ao fim e com o grito de ‘justiça’ entalado na garganta. O grito de justiça que ecoamos a cada Semana Elitânia de Souza, a cada marcha nas ruas de Cachoeira, a cada chamada na rádio poste ou no carro de som pela cidade”, afirmou Joyce Souza Lopes, ativista do Instituto Odara e coordenadora do Projeto Quilomba Pela Vida das Mulheres Negras.
Ao final de mais de 10 horas de julgamento, Alexandre foi sentenciado em 18 anos de prisão, que somam a condenação por homicídio duplamente qualificado em feminicídio e emboscada sem chance de defesa da vítima, agravado pelo descumprimento de medida protetiva mais a condenação por porte ilegal de arma de fogo.
“A forma que aconteceu a condenação de Alexandre, com a aprovação de todas as qualificadoras e agravantes pelos jurados, representa que vencemos a narrativa sobre feminicídio. A sociedade cachoeirana, representada pelos jurados, hoje fez justiça em nome de Elitânia de Souza, tenho certeza que dormiram o sono dos justos, ao contrário do que disse a defesa, ao pedirem arbitrariamente por clemência e absolvição para Alexandre, réu confesso.”, disse Joyce.
Um ciclo de violências que culminou no feminicídio
O júri foi iniciado às 9h30 com a escuta dos depoimentos de amigas e familiares de Elitânia. Diante de um plenário lotado, todas as testemunhas narraram o cotidiano de medo e violências sofrido por Elitânia. Alexandre foi descrito como uma pessoa possessiva e violenta por todas elas.
Os relatos explicitaram a violência psicológica cometida por Alexandre, que ameaçava e perseguia a vítima todos os dias a partir do momento em que ela deixou de se relacionar com ele. As ligações eram frequentes, e o réu chegava a ligar de números desconhecidos para Elitânia e familiares para vigiar e tentar controlar sua vida. As agressões verbais também faziam parte do cotidiano de Elitânia.
Segundo as testemunhas, Alexandre também cometia violência patrimonial e chegou a danificar dois aparelhos celulares de Elitânia para que ela não pudesse se comunicar com outras pessoas.
Em seu depoimento, uma prima de Elitânia, que tinha apenas 16 anos na época do crime, contou ter presenciado diversos momentos de agressão. Ela narrou que em uma dessas situações, Alexandre tentou matar a vítima enforcada e só não conseguiu porque a avó de Elitânia impediu e acabou também sendo agredida por ele. Nessa ocasião, o réu estava armado e ameaçou tocar fogo na casa com Elitânia dentro.
A colega de casa de Elitânia, que presenciou sua morte, contou que conheceu Elitânia após mais uma das agressões de Alexandre. A depoente disse que tinha um quarto vago para alugar em sua casa e que Elitânia entrou em contato informando que estava saindo de casa e precisava de um lugar para morar. Na ocasião, a vítima havia prestado mais uma queixa na delegacia da cidade de São Félix, através da qual lhe foi expedida uma medida protetiva que impedia Alexandre de manter contato ou chegar a menos de 100m de distância dela.
A medida protetiva, no entanto, não foi suficiente para proteger Elitânia. Em depoimento, sua irmã relatou ter visto Alexandre nas imediações do campus da UFRB em Cachoeira e da pousada onde Elitânia trabalhava, rondando e tentando estabelecer contato com a vítima, mesmo quando já estava proibido por lei. Ela contou ainda que notou que Elitânia havia mudado o seu jeito de se vestir, trocando as roupas curtas que gostava de usar, por roupas mais compridas que cobriam os hematomas causados por Alexandre.
Todo o ciclo de violência perpetuado por Alexandre finalizou com a emboscada e os tiros que tiraram a vida de Elitânia na noite de 27 de novembro de 2019. Segundo a colega que a acompanhava no caminho para casa, Alexandre surgiu pelas costas de ambas usando uma roupa escura, muito rapidamente agarrou Elitânia pelo pescoço e disparou três vezes na região da cabeça e do peito.
Acabava ali a vida de uma jovem negra de 25 anos, que lutava pelos direitos da sua comunidade e dos estudantes quilombolas na universidade e que sonhava em se tornar assistente social.
O pacto da masculinidade e silenciamento das violências
Para se preservar, Alexandre respondeu apenas a algumas perguntas do juiz e dos advogados de defesa, não respondendo aos questionamentos da acusação feita pelo Ministério Público. Em um depoimento rápido, ele confessou o crime e pediu desculpas à família de Elitânia e aos seus próprios familiares. Negou portar uma arma antes do crime, como apontado por testemunhas, afirmando ter comprado o objeto apenas 40 minutos antes de cometer o assassinato. Alexandre não teve testemunhas de defesa no julgamento.
Sem nenhuma prova ou testemunho que apontassem uma possível inocência de Alexandre, a defesa argumentou que o réu já pagou por sua pena, passando os últimos cinco anos encarcerado. Os advogados apelaram para que os jurados desconsiderassem as provas de agressões e medidas protetivas apresentadas e que apenas o crime de assassinato em si fosse utilizado como parâmetro para a condenação.
Argumentaram que Alexandre se apresentou à justiça e confessou o crime um dia após o ocorrido, mesmo havendo a possibilidade de construir uma tese para negar a autoria. Falaram sobre o sofrimento da família de Alexandre durante os anos em que o réu esteve preso.
Tentaram ainda desacreditar o depoimento da testemunha ocular, afirmando que a perícia aponta um tiro frontal, o que não configura como um caso de impossibilidade de defesa da vítima. No entanto, o que consta na perícia é um disparo feito no osso frontal direito da cabeça, com entrada do projétil pela região lateral, o que corrobora com a versão apresentada pela testemunha.
A defesa, em vários momentos, tentou culpabilizar a vítima pelo crime, citando o fato de uma das testemunhas ter contado que Alexandre dava caronas a Elitânia para argumentar que ela sabia do risco que corria e teve a chance de se defender, mas preferiu seguir se relacionando com o réu, tendo ela mesma quebrado a medida protetiva. Outra testemunha relatou que houve caronas forçadas e sob ameaças, com episódios de queimadura por cigarro nas pernas da vítima.
Em dado momento, os advogados criticaram a formação do júri – majoritariamente negro e feminino – argumentando que gênero e raça não pode ser um critério para julgar alguém que cometeu feminicídio. Um dos advogados chegou a falar que os homens também devem ser abarcados pelo feminismo, são ensinados a serem machistas desde pequenos e que “as próprias genitoras” costumam utilizar frases como “homem não chora” para seus filhos.
“Esse júri traz também uma resposta sobre o cenário que a gente tem enfrentado. Muito da defesa foi narrado no sentido de tentar deslegitimar e dizer que o que a assistência de acusação estava fazendo era social, que não era jurídico, como se a gente não fosse advogada, tentando desqualificar esse processo. Usaram até bell hooks para tentar nos desqualificar e culpabilizar não só Elitânia, como todas as mulheres”, afirmou Laina Crisóstomo, advogada que atuou como assistente de acusação do MP através da ONG Tamo Juntas.
Por fim, de forma arbitrária, a defesa suplicou clemência pelo réu, pedindo aos jurados que os absolvessem em nome da Bíblia e do amor de Cristo, pois um homem tem direito de se arrepender por um crime cometido.
Para o Estado brasileiro, quanto vale a vida de uma mulher negra?
Munida de provas e testemunhos que não deixavam dúvidas sobre todas as circunstâncias, materialidade e autoria do crime, a defesa apontou a falha do Estado em proteger Elitânia, mesmo ela tendo feito sucessivas denúncias e portar duas medidas protetivas contra Alexandre. Através de laudos e outros documentos oficiais, a defesa comprovou agressões sofridas por Elitânia, boletins de ocorrência por agressões e ameaça, registros telefônicos de Alexandre no local e horário do assassinato e imagens de câmeras de segurança que mostram seu carro deixando o local.
“Há cinco anos não acontecem júris em Cachoeira e há cinco anos a gente clama por justiça para Elitânia, então esse resultado traz também uma resposta, porque o debate não é só sobre Elitânia, é sobre tudo o que aconteceu com ela. Elitânia pediu socorro à justiça para garantir direitos, mas infelizmente ela tombou, rompendo com seus sonhos”, disse Laina.
As provas e testemunhas foram suficientes para convencer os jurados a condenar Alexandre por homicídio duplamente qualificado em feminicídio através de emboscada sem chance de defesa da vítima, com o agravante de descumprimento de medida protetiva e também por porte ilegal de arma de fogo. Ainda assim, o ajustamento da sentença feita pelo juiz, decretou a pena mínima para cada um dos crimes cometidos, resultando em 18 anos de prisão, dos quais serão descontados os cinco já cumpridos desde 2019.
A condenação de Alexandre, sem dúvidas, foi uma importante vitória, já que muitos casos de feminicídio sequer chegam à fase de julgamento. No entanto, é necessário chamar a atenção para o fato de que 67,4% das mulheres vítimas de feminicídio no Brasil são negras. A responsabilização de Alexandre, enquanto autor do crime, é fundamental e importante para trazer algum alento à família e desencorajar outros homens que pensam em cometer crimes contra as mulheres, mas se faz urgente tensionar as instituições do Estado em relação à proteção e preservação das vidas das mulheres negras.
No fim, não é só Alexandre que precisa ser responsabilizado, o Estado também precisa responder pela vida de Elitânia e de tantas outras. As vidas das mulheres negras não são descartáveis!