A Universidade é uma instituição estratégica para um novo paradigma de desenvolvimento
O Brasil vive um momento de disputa entre diferentes projetos de Sociedade, de Estado e de Nação, com uma correlação de forças complexa, muitas vezes não bem compreendida, e inserido numa conjuntura internacional de transição forte de um mundo unipolar para um outro multipolar, com as consequentes desestabilizações e instabilidades advindas da mudança de hegemonia na geopolítica. A instituição Universidade se encontra nesse quadro mais amplo em que um mundo velho perde espaço e morre, mas um novo mundo ainda não se consolidou, um momento em que pode haver um desenlace interessante para a construção de um planeta mais justo, com mais inclusão social, multipolar, com maior soberania para as diferentes nações e com uma radical e necessária transição socioecológica. Mas vivemos no mesmo momento em que o resultado dessa tensão pode ser um cenário de guerras, imposição de uma hegemonia unilateral sobre a maior parte do planeta, de destruição ambiental e crise climática, que já está em curso e não se constitui mais em previsão de futuro, um mundo de exclusão social gritante, de opressão e destruição.
O entendimento da missão, da natureza e do caráter da Universidade então se inscreve nesse panorama mais amplo, inserido num debate mais abrangente sobre qual a concepção de mundo, de sociedade, sobre qual deve ser a relação entre o ser humano e o meio ambiente mais acertada. A Universidade que construímos e reconstruímos diariamente se insere no debate mais amplo sobre concepção de Estado, de políticas públicas, de compromisso com a resolução dos grandes problemas sociais, econômicos, ambientais e políticos, ao mesmo tempo em que se consolida como instituição de formação, de ensino, de pesquisa básica, de pesquisa aplicada e de interação com a Sociedade, com a extensão universitária.
A Universidade é uma instituição estratégica para um novo paradigma de desenvolvimento, sendo que as grandes potências mundiais, Estados Unidos e China, se consolidam e se mantêm fortes a partir de investimentos sólidos em suas universidades e numa concepção de integração dessas instituições com seu projeto de Nação. Ao mesmo tempo, a Universidade deve ultrapassar e transcender esse papel de participar desse projeto de Nação e se constituir como espaço de reflexão e crítica sobre esse projeto, influenciando-o e redefinindo-o. E, mais além, deve ter a autonomia e a liberdade para a pesquisa e a produção de conhecimento, de cultura e de Arte sem a necessidade de dar respostas imediatas e pontuais, mas de proporcionar um avanço do conhecimento em diferentes áreas que não necessariamente tenham uma “utilidade imediata”.
Muitas vezes, a Ciência requer essa pesquisa “desinteressada”, assim como o estudo das Humanidades e das Artes não são subordinados a um cronograma estrito de dar resposta a determinadas demandas. A Universidade forma pessoas culturalmente, com valores que nós queremos democráticos e mais elevados, e tal processo ganha autonomia em relação às demandas mais imediatas. No nosso projeto de Universidade amplo e complexo, assim como a Sociedade que a acolhe, há espaço para esses diferentes vetores.
Enquanto grande projeto humano, a instituição universitária se consolida, arrisco e ouso dizer, como a mais sofisticada instituição da sociedade. Ela é mais livre e democrática que outras instituições, como as forças armadas, as igrejas, as empresas sob as diversas matizes (públicas, privadas, mistas, cooperativas, etc.) e as demais instituições do Estado. Tem um perfil mais aberto para criar, conservar, transmitir, criticar, redefinir o patrimônio científico, cultural, artístico, humanístico e político de um povo ou de toda a Humanidade. A todo momento é solicitada a dar respostas e a contribuir com os sonhos, projetos e demandas de uma civilização, e por conta disso permanentemente deve se legitimar frente às sociedades. Ela transcende e ao mesmo tempo se legitima no espaço social; encontra espaços de liberdade e compromisso com a sociedade.
Essa legitimação passa pela sua capacidade de forjar e preservar o patrimônio cultural, científico e político de um povo ou de diferentes nações, por permitir o avanço na compreensão dos fenômenos da natureza e da possibilidade de controlá-los e compreendê-los. Mas em determinados momentos históricos serviu para manter o status quo, para reproduzir as elites e as estruturas das classes sociais; em outros momentos compartilhou da missão de criar grandes nações e estruturas estatais, de crescimento e poder econômico, político e militar.
Em outros momentos ainda, como no caso brasileiro, foi chamada a contribuir com o desenvolvimento nacional, com a luta pela soberania cultural, tecnológica, econômica e para promover a inclusão social e a diminuição das desigualdades sociais, raciais, de gênero e regionais. São diferentes demandas, muitas vezes complementares e que contribuem para uma instituição multifacetada que tem o desafio de se construir enquanto unidade na diversidade.
Esse chamamento à inclusão social que a Universidade brasileira acolheu coexistiu com a necessidade de manter e ampliar a qualidade de sua graduação e pós-graduação, valorizar sua pesquisa, viabilizar sua internacionalização e sua reputação internacional, e conseguiu combinar essas demandas com competência, como entre 2003 e 2016. Para muitos, ter qualidade acadêmica e inclusão social eram dinâmicas antagônicas.
Nesse período, tivemos uma ampliação do acesso às instituições universitárias públicas, uma política universalista de abertura de vagas, e a adoção de cotas e outras ações afirmativas de acesso, permanência e acompanhamento de egressos. Essas medidas conviveram simultaneamente com a elevação da produção científica nacional, formação de mestres e doutores, maior número de publicações em revistas indexadas internacionalmente e elevação das universidades brasileiras nos rankings internacionais. É possível então ter inclusão e justiça social nas universidades e preservação e melhoria de sua qualidade acadêmica. Em outros períodos, como entre 2016 e 2022, as instituições muitas vezes enfrentaram um cenário adverso de ataque às suas estruturas e às suas comunidades, com visões negacionistas da Ciência e avessas à ideia de um projeto educacional público, forte e consistente.
A Universidade, assim como a Educação como um todo, se apresenta hoje como um ator social fundamental se quisermos construir um projeto de sociedade, em nível nacional e global, e compartilhamos com Paulo Freire sua visão de que a Educação é um espaço de disputa e de permanente redefinições, é atravessada pelas forças sociais, tanto locais quanto internacionais.
Essa sofisticação da instituição universitária nos leva a compreendê-la como um espaço diverso e plural, com aderência para diferentes demandas e em processo de constante aumento de sua complexidade, campos de saber, atividades e dimensões. A Universidade deve abranger a formação de qualidade na Graduação e na Pós-Graduação, a pesquisa básica e a pesquisa aplicada, mas ter relações para apresentar soluções e parcerias com governos, movimentos sociais, empresas. O que pode alinhavar essas relações é a compreensão de que é possível manter sua autonomia e, a um só tempo, se manter comprometida com um projeto de Nação e de Civilização. Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro formularam esses princípios quando da criação da Universidade de Brasília em 1961, quando o Brasil construía sua nova capital justamente embalado pelo sonho da construção de um país diferente, industrializado, integrado em todo seu território, com presença marcante do Estado como planejador e indutor do desenvolvimento.
Anísio e Darcy formularam essa síntese, ao construir uma Universidade de ponta, que começa a funcionar pela Pós-Graduação e atrai pesquisadores de todo o país e do mundo para ser uma referência acadêmica internacional e escreveram que a Universidade deveria se debruçar sobre os grandes problemas nacionais, como a fome, a miséria, as desigualdades regionais, a falta de soberania tecnológica, científica e cultural.
A concepção desses dois educadores não é distinta do projeto da Universidade do Distrito Federal (UDF), que existiu entre 1935 e 1937 na antiga capital do Rio de Janeiro por obra do mesmo Anísio Teixeira, e expressou o pensamento dos Pioneiros da Escola Nova. Ela recebe a contribuição da Reforma da Universidade de Córdoba, na Argentina, em 1918, modelo renovador da Universidade Latino-Americana. Tal movimento renovador, profundamente implicado com a Democracia, com a soberania nacional, com o livre pensar e o compromisso com a solução dos grandes problemas nacionais não entra em contradição com o modelo da Universidade de Pesquisa, identificado com a Universidade de Humboldt na Alemanha de 1810, mas ganha novos contornos com o movimento reformista no Brasil da década de 1960. Nas décadas seguintes, esse movimento amadurece.
Caminhamos no sentido de Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira, que com certeza podem ser atualizados e aprimorados. Podemos chegar a uma síntese da compreensão da Universidade, que não se inscreve em outros modelos. Não nos inscrevemos no modelo da “Torre de Marfim”, de isolamento da instituição, que acaba por reproduzir as classes sociais e manter a cultura dominante e se enxerga e reproduz uma ideologia de estar olimpicamente acima das contradições sociais.
Muito menos nos inscrevemos no modelo de Universidade operacional, na crítica de Marilena Chauí, quando na década de 1990 houve uma onda neoliberal que procurou compreender a instituição de forma subalterna, como parte de um país que deveria se inscrever apenas na periferia do Capitalismo mundial apenas como produtor de matérias primas e pouca produção sofisticada. Por conta dessa visão de “colônia renovada”, a instituição seria supérflua na maior parte do país, bastando poucos centros de excelência no território nacional. E onde ela existisse deveria seguir o receituário de servir ao mercado, sem a necessidade de pesquisar e produzir conhecimento novo, nem projetar uma nova Sociedade.
A nossa Universidade, que muito bem ultrapassou esse momento e se consolidou como centro de pesquisa, ensino e extensão tem o permanente desafio de estar ligada às políticas públicas de Educação, e hoje o país experimenta um programa nacional de Educação Integral em tempo integral que pode se amalgamar perfeitamente com a política já em vigência de curricularização da Extensão universitária, que estabelece que 10% da carga horária dos alunos de graduação podem e devem estar em atividades relacionadas à Sociedade. A Universidade deve estar ligada, contribuindo, criticando e participando do Sistema Único de Saúde (SUS), do Sistema Único da Assistência Social (SUAS), das políticas de Cultura, de Segurança Pública, de Desenvolvimento Agrário da Reforma Agrária, das cidades e da transição socioecológica.
A Universidade pode estar articulada com o esforço de reindustrialização verde do Brasil promovido pela política já exitosa da “Nova Indústria Brasil”, em cada um dos seus eixos: Defesa, Tecnologia da Informação, Infraestrutura de Cidades, Transição Energética e Complexo Industrial da Saúde. Precisamos acrescentar a esses eixos outros ainda, como a Economia Criativa, grande geradora de riqueza, de empregos e trabalho e de coesão social por meio da Cultura.
As transformações tecnológicas, no campo das Tecnologias da Informação, da Revolução 4.0, da Inteligência Artificial (IA), da digitalização de toda a produção e da transformação radical do mundo do trabalho precisam ser levadas em consideração pela Universidade, seja para repensar seus currículos, utilizar novas tecnologias e estabelecer novas sociabilidades, repensar o perfil dos egressos, o tipo de Sociedade que queremos construir e incidir. A recusa ou desconhecimento dessa nova realidade significará estar à margem de uma nova configuração social e pode ser extremamente prejudicial para a Universidade se manter como instituição relevante para a Sociedade.
Apelamos ao conceito de Universidade como essa síntese, pois estabelecer relações com indústrias, com empresas, com governos, com movimentos sociais e com a Sociedade pode e deve caminhar junto com uma universidade inclusiva socialmente, com uma instituição que desenvolva sua pesquisa e mantenha sua capacidade de formação e sua prioridade para a pesquisa básica nas Ciências, nas Humanidades e na produção artística. Trata-se de uma Universidade inclusiva, com qualidade acadêmica inquestionável e implicada com um projeto de civilização distinto, socialmente e ambientalmente sustentável.
O debate sobre esse papel das instituições universitárias no Brasil é especialmente importante agora, num momento de correlação de forças desfavorável em que os setores autoritários e golpistas sequestraram metade do orçamento do governo federal com as emendas parlamentares. Nesse momento de disputa entre diferentes projetos é fundamental reconhecer quem são os atores políticos e sociais na arena brasileira para criar as alianças necessárias para esse fortalecimento das instituições universitárias, ao lado do fortalecimento das políticas de Cultura, de Ciência e Tecnologia, da Educação Básica, pois são campos que sofrem com as ameaças de ruptura democrática e a sabotagem institucional que enfraquecem as políticas do governo federal.
Convivemos com um congresso com poderes hipertrofiados e perfil majoritariamente afinado com o governo anterior, que busca priorizar o poder do capital financeiro, ao sugar recursos que poderiam ser investidos em políticas sociais e políticas de indução do desenvolvimento econômico e da transição ecológica.
O debate sobre Universidade não pode desconhecer essa arena política. Recentemente, o governo federal anunciou o PAC das Universidades, notícia alvissareira, com R$ 5,5 bilhões para consolidação de edificações anteriormente paralisadas, para a construção de 10 novos hospitais universitários e a abertura de alguns campi novos. Entretanto, ainda falta recompor o orçamento das IFES, e é fundamental que o aumento que está ocorrendo no orçamento do Ministério da Educação seja repassado também às instituições universitárias. Deve-se voltar ao patamar de quando o orçamento discricionário das IFES era o correspondente a 7,5% do Orçamento do MEC, em 2016, antes do golpe contra a presidente Dilma. Essas são condições para propiciar a reconstrução das Universidades, violentamente atacadas nos seis anos de Temer e Bolsonaro.
Nessa conjuntura, ou em outras, o conceito de uma universidade inclusiva, com qualidade acadêmica elevada e implicada com um projeto de civilização ambientalmente e socialmente justo nos ajuda a estabelecer as alianças para essa recomposição do orçamento, para manter a Universidade como instituição que carrega os sonhos e potencializa os desejos da Sociedade. Uma Universidade para transformar o país e as relações geopolíticas vigentes e continuar sendo em grande medida o centro da vida da civilização em sua parte mais criativa.
Edição: Gabriela Amorim