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Empreendedorismo negro: da resistência ao marketing

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Dezenas de baianas de acarajé que criaram seus filhos e netos com base nesse comércio tradicional na Bahia - Manu Dias/GOVBA
Na condição de “liberta” restou à população negra empreender, criar estratégias de sobrevivência

O processo de colonização portuguesa no Brasil submeteu milhões de indígenas e africanos ao trabalho forçado, em condições desumanas e violentas, entre os séculos XVI e XIX, principalmente para serviços braçais domésticos e na agricultura. Durante 388 anos a economia do país foi sustentada pelo trabalho de homens e mulheres escravizados, sob tortura, assédio e sem qualquer proteção. A relação estabelecida com o trabalho foi marcada por sofrimento e nenhuma compensação que assegurasse um futuro.

Na condição de “liberta” restou à população negra empreender, criar estratégias de sobrevivência como as lavadeiras e “ganhadeiras” do comércio ambulante, principalmente de produtos artesanais e comidas.

A histórica luta pela sobrevivência impôs à população negra no Brasil o investimento em pequenos negócios, comércio ambulante, serviços de engraxate, sapateiro, alfaiate e outros afins, nos centros urbanos e zonas rurais do país.

Após séculos de opressão, quando a força de trabalho negra e indígena foi explorada por uma elite econômica, sob a omissão do Estado brasileiro, surgem as ações de incentivo ao “empreendedorismo negro” no âmbito das políticas públicas de governos herdeiros do passado colonial. O sistema capitalista tem esse poder, transforma tudo (e todos) em mercadoria, difundido através de marketing. Ora, estimular “as grandes ideias e os pequenos negócios” de segmentos historicamente protagonistas de trajetórias de resistência para conquistar a independência econômica efetiva, sem qualquer incentivo, soa como piada.

A moda do empreendedorismo negro promovida por algumas instâncias governamentais subestima esse histórico, a economia criativa, a capacidade de gestão de homens e mulheres (em especial). Lembro de dezenas de casos de baianas de acarajé que criaram seus filhos e netos com base nesse comércio tradicional na Bahia. Além dos aspectos culturais e religiosos, os itens vendidos no tabuleiro das baianas de acarajé representam uma cadeia produtiva complexa, que requer planejamento, análise do mercado consumidor e fornecedor e muito controle de qualidade para enfrentar a crescente concorrência. Famílias inteiras, incluindo muitas gerações, sobrevivem desse bem sucedido negócio, que resiste às inovações e a desleais concorrentes que criaram “o bolinho de Jesus”.

O fato é que o empreendedorismo negro não é novidade. Não pode ser peça publicitária de marketing governamental para iludir, fazer fachada de ações afirmativas para reduzir as profundas desigualdades socio raciais no Brasil.

Os empreendedores negros precisam mesmo é entrar no mercado competitivo, em qualquer ramo, com acesso ao crédito, atualização para o uso de tecnologias de ponta, oportunidade de expor e comercializar seus produtos e serviços. Não basta chamar Salvador de “capital afro” sem efetivamente oferecer políticas públicas que subsidiem a gestão desses micro, pequenos, médios e até grandes empresários.

Em concorrências ou licitações públicas para exploração comercial de espaços públicos por exemplo, onde há atrativos turísticos, quantos empreendedores negros têm acesso? Em geral, o que se observa é que alguns deles perdem seus pontos comerciais consolidados há anos por não terem condições objetivas de disputar com outros concorrentes permissionários da prefeitura ou do governo do estado, com capital e expertise.

Pregar o empreendedorismo negro sem um diagnóstico profundo das reais demandas do setor, do perfil dos negócios e suas dificuldades é inócuo. Para que não cheguem à falência ou ao endividamento que compromete a vida dessas empresas, é preciso mais do que boas intenções dos governantes. Afinal, quem sempre exercitou a resistência para conquistar a autonomia econômica em cenários tão adversos tem muito a ensinar aos marketeiros de plantão.

Edição: Gabriela Amorim