A Casa CEAS foi o palco da apresentação do “Dossiê: Formas periféricas de morar” (Parte 1 e 2) no último dia 10. Compareceram dezenas de representantes de organizações populares, lideranças comunitárias e pesquisadores para uma roda de conversa sobre a edição dos Cadernos do CEAS e a experiência das lutas por moradia na capital baiana.
O Dossiê, composto por estudos sobre a questão da moradia em várias regiões do país, traz importantes reflexões sobre a política habitacional na Bahia e as iniciativas das organizações populares que resistem às ações do Estado e do setor privado em seus territórios.
De acordo com Thaianna Valverde, uma das organizadoras, o dossiê trata do morar periférico. “Partindo da necessidade de ruptura com as abordagens engessadas sobre a temática da habitação popular, geralmente ancoradas em marcos colonialistas e racistas de um modelo de urbanização e de cidade excludente, que tem cor, classe e dinâmicas opressivas de gênero e sexualidade, geracional, dentre outras, estabelecidas”, acrescenta.
A pesquisadora explica que o volume 1 traz “abordagens relacionadas às experiências, estratégias e negociações empreendidas na luta na e pela cidade, como autoconstrução, ocupações urbanas, e práticas cotidianas de enfrentamento às violências, às diversas modalidades de expulsão territorial, associadas à militarização estatal e paraestatal, bem como à ausência de políticas públicas efetivas, e aos mecanismos de apagamentos”.
O volume 2, por sua vez, “agregou debates em torno da produção capitalista do espaço urbano periférico, das políticas e programas habitacionais e de urbanização, e das agendas da luta pelo direito à moradia como direito à cidade”.
Entre as participantes do encontro estavam as mulheres que deram voz à entrevista “Nossos passos vêm de longe: mulheres tecendo resistências e lutas por moradia digna e direito à cidade em Salvador” presente na atual edição dos Cadernos do CEAS.
Ana Caminha, moradora da Gamboa e uma das entrevistadas, conta que a entrevista vem com informações extremamente importantes, que são as falas das comunidades. “O dossiê como um todo traz “um relato real do que é viver nesses territórios, a partir da voz das pessoas que habitam esses espaços. Ele leva para a sociedade uma história que não é conhecida, ele leva para a sociedade as formas que nós temos de morar e onde é que nós buscamos e encontramos a verdadeira segurança para nossas vidas, para nossas famílias, no nosso dia a dia”, ressalta a liderança comunitária.
Para Fernanda Moscoso, coordenadora do Movimento Sem Teto da Bahia e integrante da Articulação do Centro Antigo de Salvador, o dossiê e a entrevista são de extrema importância para a luta. A militante destaca que o dossiê traz um retrato do que é a luta por direito à cidade a partir de um olhar dos movimentos sociais:
“Principalmente quando se faz a escuta dessas lideranças, dessas mulheres que vivem e que organizam esses movimentos sociais e essa cidade. Isso é a construção de um legado, né, que a gente faz luta não só pela conquista imediata (que geralmente não acontece), mas para uma transformação social maior, viabilizando direitos e principalmente inquietando a sociedade a pensar em como transformar essa sociedade num lugar melhor, que as moradias sejam de fato moradias dignas e que o direito à cidade seja concretizado”, afirma.
Situação urbana de Salvador
Salvador passa por um período em que setores privados associados ao mercado imobiliário, turístico, financeiro, entre outros, estão em ofensiva na apropriação do solo urbano. “[Salvador] é uma cidade extremamente excludente, uma cidade que vem passando ao longo dos anos (desde a década de 1960) por um processo de gentrificação”, afirma Fernanda Moscoso. Esse processo pode ser visto na construção de edifícios de luxo que não se relacionam com as populações moradoras no Centro Antigo de Salvador, por exemplo.
“Isso tem um impacto significativo, porque a gente está vendo agora um esvaziamento da cidade, e o PIB da cidade caindo, porque querem se apropriar da nossa música, querem se apropriar da nossa comida, querem se apropriar da nossa cultura, mas não querem os nossos corpos, infelizmente”, avalia Moscoso.
Rita Ferreira, liderança da Ocupação Quilombo Paraíso no Subúrbio e coordenadora do MSTB, analisa a atuação do Estado frente a esse processo de gentrificação. Ela defende que a luta popular deve ser “por uma moradia dignamente construída com os sujeitos, não essa do Minha Casa, Minha Vida com unidades de 38m² para entregar às mulheres com filhos, após retirar as famílias dos seus territórios sem pensar na sobrevivência dessa população”.
“O programa Minha Casa, Minha Vida foi um grande instrumento do mercado capitalista imobiliário para construir conjuntos habitacionais na divisa entre Salvador e Simões Filho, Salvador e Lauro de Freitas, muito nessa perspectiva de tirar esses corpos da cidade e fazer com que as pessoas só se desloquem para a cidade para trabalhar”, conclui Fernanda Moscoso.
Essa situação de expulsão das populações de diversos territórios para áreas distantes do centro da cidade tem provocado uma série de organizações populares a pensar estratégias comuns para enfrentar a situação. Os movimentos pontuam a necessidade da formação política para estabelecer um diálogo amplo com a sociedade e para pautar o direito de decisão das comunidades sobre seus territórios.
Os Cadernos do CEAS
Criada pelo Centro de Estudos e Ação Social (CEAS) em Salvador em 1969, os Cadernos do CEAS são uma revista que tem a finalidade de articular o estudo da realidade à prática transformadora. Durante mais de 50 anos, passando por momentos da história como a ditadura militar, a redemocratização e o avanço do neoliberalismo, os Cadernos buscaram analisar a realidade brasileira e mundial, denunciando os conflitos entre as classes e apontando, a partir da prática junto aos movimentos sociais o caminho para a superação das desigualdades e violências.
Joaci Cunha, coeditor da revista, afirma que o conteúdo crítico circulado pelos Cadernos há 55 anos é produzido “de forma comprometida com os interesses das classes trabalhadoras, em defesa de uma sociedade democrática e de efetiva observação dos direitos humanos e sociais. Para isso, mobiliza autores(as), lideranças, pesquisadores(as), acadêmicos ou não, identificados com os ideais de uma sociedade justa e igualitária”.
Edição: Gabriela Amorim