Uma das nossas tecnologias relacionais é a conversa
As linhas duras da colonialidade endurecem as ideias e os afetos. O que está endurecido não se move e o que não se move está aprisionado na impossibilidade de ser outra coisa. Não poder ser outra coisa além do que temos sido tem nos adoecido gravemente, enquanto sujeitos e coletividades. Parece inviável sonhar com outro mundo, outras relações, outros modos de existir. Só parece.
O desejo vai se deparar com a prisão nas ideias e afetos pré-estabelecidos, como uma espécie de porto seguro das nossas fantasias e ações. Nego Bispo nos provoca quando diz que desenvolvimento desconecta. A palavra boa é envolvimento, confluência, o que nos move para o compartilhamento e respeito.
“Um rio não deixa de ser um rio porque conflui com outro rio, ao contrário, ele passa a ser ele mesmo e outros rios, ele se fortalece. Quando a gente confluencia, a gente não deixa de ser a gente, a gente passa a ser a gente e outra gente – a gente rende. A confluência é uma força que rende, que aumenta, que amplia”.
Uma das nossas tecnologias relacionais é a conversa. Recentemente vi numa exposição de artistas indígenas chamada Nhe’e Se que o diálogo cura. Nhe’e Se é uma palavra guarani sagrada com sentidos múltiplos como espírito, ser, vida, falas, desejo de fala segundo Sandra Benites. E para o campo Psi sabemos que o tratamento dos sofrimentos e mal estar vividos pelos sujeitos é a fala.
É na presença do outro, numa confluência de quem somos, do que falamos e transformamos em ato, numa abertura para vir a ser, que é possível curar-se de si, do narcisismo primeiro que nos fixa na nossa própria imagem, no nosso próprio Eu, no nosso próprio prazer em que não há espaço para a alteridade, impedindo uma experiência comum, confluente acontecer.
Fixados no nosso próprio Eu não é possível uma experiência de compartilhamento e respeito. E para nós sujeitos amefricanos, este narcisismo está atravessado pela racialidade que estrutura uma linguagem, uma sociedade e suas diversas relações. Parece que temos forjado sujeitos incapazes de lidar com a alteridade, enclausurados no próprio Eu e seus prazeres. Seria o fim da experiência comunitária? Da vida diversa, colorida e confluente?
Se o nosso futuro é ancestral, como diz Krenak, será preciso recobrar a memória do que já fomos um dia, ou melhor do que nossos antepassados e ancestrais foram. Somos seus representantes neste tempo, repetimos o passado de algum modo, seja ele bom ou ruim. Portanto, recobrar a memória é resgatar o que no passado pode nos salvar de nós mesmos. Resgatar as memórias que tecem o amanhã porque futuro sem diálogo é o abismo.
Edição: Gabriela Amorim