Bahia

Coluna

Mudanças climáticas na RMS e o planejamento para a transição ecológica das cidades

Há tempos a região metropolitana de Salvador sofre com eventos climáticos extremos - Gambá
A RMS é historicamente palco de eventos climáticos extremos, especialmente Salvador e Lauro de Freit

Por Erika do Carmo Cerqueira, professora doutora do Departamento de Geografia da UFBA e pesquisadora do Observatório das Metrópoles, Núcleo Salvador ([email protected]); e Maria das Graças. B. Gondim dos Santos Pereira, professora doutora da Faculdade de Arquitetura da UFBA e pesquisadora do Observatório das Metrópoles, Núcleo Salvador ([email protected]).
           
Com poucas exceções, os estudos urbanos têm se ocupado, prioritariamente, ao longo das últimas décadas, em abordar as questões urbanas contemporâneas quanto às tendências dos modos predominantes de expansão metropolitano: da concentração à suburbanização e à conurbação, formas da expansão metropolitana, características do período do desenvolvimentismo; e, da metropolização e peri-metropolização do território às formas ditas pós-metropolitanas, características do atual período de acumulação flexível.

A compreensão das dinâmicas territoriais, fundamentais, tem focalizado preponderantemente as dimensões relacionadas às questões sociais, econômicas e espaciais metropolitanas como: a funcionalidade do sistema urbano e metropolitano com destaque para a fragmentação e a segmentação, a mobilidade, o acesso a serviços — educação, saúde e segurança —, as condições de moradia e vulnerabilidade social, oportunidades de geração de emprego e renda.

Planejamento e a dimensão ambiental e ecológica

A dimensão ambiental e ecológica, nas dinâmicas de expansão metropolitana compareceram, até aqui, de modo secundário, mesmo com as garantias legais para elaboração de planos urbanísticos com o grifo da sustentabilidade, desde o Estatuto da Cidade, em 2001. No jogo de forças para a ocupação e uso do território, as inscrições capitalistas têm contornado restrições e normas urbanístico-ambientais. Constatam-se inúmeros registros de violações dos dispositivos legais de proteção/preservação ambiental, o que evidencia quão impregnado culturalmente está o desconhecimento das implicações do ambiente para a vida no planeta.

As preocupações com a produção da cidade e de áreas urbanas com relação ao quanto significam em termos de quebra dos ciclos ecológicos, de supressão dos serviços ecossistêmicos — ou seja, quadro de avaliação territorial para detectar o impacto nas componentes ecológicas, na pegada ecológica —, quanto afetam outras espécies que coexistem no mesmo território ou quanto impactam em termos de perda de captura de carbono e como implicam mudanças climáticas, dentre outras variáveis, estas, estão mais distantes ainda das concepções de planejamento urbano e regional.

Lamentavelmente, chegamos ao ponto delicado onde a quebra das relações de coexistência entre espécies, quebra dos ciclos ecológicos e consequente perda de serviços ecossistêmicos, nos colocaram no umbral da condição de resiliência do planeta. Em particular, com forte contribuição do modo de vida concentrado da população mundial em áreas urbanas, estimado em 70% em 2050, como apontam as projeções de diversas instituições, inclusive a Organização das Nações Unidas (ONU).

Pesquisas apontam que aproximadamente 3% da superfície do planeta é ocupada por áreas urbanas. Entretanto, a pegada ecológica das cidades corresponde de dez a cem vezes o seu tamanho para produzir os fluxos de energia, bens materiais e serviços não materiais. O impacto global é da ordem de 78% das emissões de carbono, 60% do uso residencial da água e 76% de uso de madeira florestal, e, são cinco, os tipos de mudança global que afetam e são afetados pelas mudanças nos sistemas urbanos: mudanças no uso do solo e cobertura, ciclos biogeoquímicos, clima, sistemas hidrológicos e biodiversidade.

Clareza sobre este quadro de comprometimento ambiental e ecológico muitos já têm, há algum tempo. Outros seguem desavisados ou aderem a atitudes negacionistas apoiadas em narrativas contraditórias, argumentos que não mais resistem ao efeito demonstrativo das mudanças climáticas denotadas nos eventos desastrosos que comparecem na mídia com regularidade, situação já reconhecida por organismos internacionais como de emergência climática.

Certamente o estado de alerta ante os desastres climáticos vêm transformando as percepções sobre a importância de não apenas preservar a condição humana de vida, mas de preservar as condições de vida para o conjunto das espécies que conosco cocriam a condição de vida neste planeta.

Mudanças climáticas na RMS

Nesse contexto, buscou-se discutir brevemente o comportamento da temperatura da superfície na Região Metropolitana de Salvador (RMS) e sua relação com as alterações do uso da terra no espaço regional, no intervalo de 1985 a 2022, cerne do período do modo de produção capitalista de acumulação flexível. O período é característico de grandes investimentos estrangeiros diretos, empreendimentos do setor de turismo, da indústria e da criação da base urbana de suporte ao desenvolvimento destes setores que, paulatinamente, foram especializando o território, adequando-o às suas prioridades.


Relação entre temperatura da superfície e a mudança do uso do solo de 1985 a 2022 / OM Núcleo Salvador

Os cartogramas (a) e (b) ilustram claramente o aumento da temperatura da superfície na RMS ao longo dos últimos 37 anos. Nos cartogramas (c) e (d) percebe-se grande transformação nos padrões de uso do solo desse território, sugestivo de implicação direta na temperatura. Destaque-se que o crescimento das áreas urbanas durante este período aumentou aproximadamente quatro vezes (em 1985 eram 9.964 hectares quadrados e em 2020 eram 38.500 hectares quadrados de área urbanizada). Nos cartogramas, também é perceptível que perdas de cobertura vegetal implicaram aumento de temperatura localizado.

Esse espaço produzido tem impacto direto na redução exponencial do albedo da superfície urbana (coeficiente de reflexão da superfície) que passa a absorver uma maior parte da radiação solar produzindo as ilhas de calor urbana, e que podem alterar o ambiente atmosférico com incidência direta na recorrência e intensidade de eventos hidrológicos extremos como inundação e deslizamentos.

A RMS é historicamente palco de eventos climáticos extremos, especialmente Salvador e Lauro de Freitas, seja por sua geomorfologia desde morros às planícies inundáveis, seja pelo modelo de ocupação, pela lógica do mercado ou do Estado ou pela lógica da necessidade; seja pela tomada de decisões por um modelo que como dito acima produz um espaço urbano que compromete os ciclos ecossistêmicos.

Crise ambiental e climática, planejamento e gestão

Considerando que a mudança do uso da terra é apontada como o fator que maior impacto causa nos serviços ecossistêmicos e nas mudanças climáticas, isto coloca nas mãos do gestor público municipal e regional a grande responsabilidade, como principal agente regulador de atividades e empreendimentos, de assegurar o não agravamento do quadro de desempenho ambiental e ecológico atual e de empenhar-se em recuperar condições desfavoráveis já existentes.

A questão central é qual será nosso modelo de planejamento urbano para o futuro?

Continuar com o atual modelo é prolongar os problemas atuais, que diante das mudanças climáticas e do status quo da realidade social, econômica, física do território da RMS, só leva a um cenário de intensificação das inundações, deslizamentos, desabamentos, perdas econômicas e de vidas, especialmente da população mais vulnerável.

De fato, o Plano Diretor Municipal é o principal instrumento de gestão à disposição dos gestores municipais. Os resultados acumulados de danos ambientais sinalizam que as estratégias utilizadas e modelo de desenvolvimento que vem sendo adotado nestes Planos Diretores, até então, são comprovadamente insatisfatórios ou contêm equívocos metodológicos que precisam ser realinhados na perspectiva do enfrentamento da crise climática e ambiental.

Um futuro diferente, perpassa por um planejamento urbano voltado para a transição ecológica das cidades. Abordagem que vem sendo amplamente discutida por profissionais e teóricos de diversas áreas, e, que, de maneira generalista, perpassa pelas premissas de redução das emissões de gases de efeito estufa, eficiência energética, conservação e gestão sustentável dos recursos naturais, economia circular, justiça social e inclusão e inovação e desenvolvimento tecnológico.

As revisões periódicas, obrigatórias, dos Planos Diretores são momentos para a sociedade exercer o controle sobre os rumos do seu território. A formulação de um instrumento de gestão, mais condizente com o propósito de realizar a transição ecológica das cidades e enfrentar o desafio para a transição energética e descarbonização das cidades, é necessária. É de igual modo premente, implementar o paradigma da sustentabilidade no planejamento agregando a Ecologia Urbana como diferencial às concepções interdisciplinares, já incorporadas às práticas de planejamento urbano e regional.

A perspectiva de a Ecologia Urbana agregar novas possibilidades para as cidades e áreas urbanizadas, num ciclo biogeofísico dos ecossistemas em que se inserem,  configura, numa visão sistêmica, um conjunto de abordagens metodológicas que devem ser concomitantemente trabalhadas: novas variáveis a serem valorizadas e valoradas; sistemas de avaliação daquelas variáveis mais representativas da garantia de não agravamento do quadro ambiental e ecológico; condicionamento de abertura de novas áreas para empreendimentos à recuperação e reconstituição ambiental, para assegurar o balanço e o não agravamento das condições em relação às variáveis chave, minimamente.

Enfim, saliente-se que é crucial, nas eleições municipais deste ano, estar atento aos candidatos, prefeitos e vereadores, que defendam pautas relacionadas à essa transição ecológica das cidades. Vai exigir dos planejadores sua reinvenção, mas traz a possibilidade de iniciarmos a transição ecológica dos espaços urbanos pautada pelo imperativo da correção de rumos e ajuste do nosso grande equívoco civilizatório: o da exploração ilimitada de recursos que são finitos levando ao umbral do risco da condição de vida no planeta.

Edição: Gabriela Amorim