A Justiça Federal deu prazo de seis meses para que o Instituto Nacional de Colonização da Reforma Agrária (Incra) conclua o procedimento de titulação das comunidades remanescentes de quilombos de Ilha de Maré, em Salvador (BA). A sentença, atende a um pedido do Ministério Público Federal (MPF) e determina que a União supervisione o cumprimento da sentença, sendo responsável solidária pelo pagamento da multa diária de R$ 20 mil em caso de descumprimento.
Na ação civil pública, ajuizada em julho de 2017, o MPF afirma que o direito das comunidades Bananeiras, Porto dos Cavalos, Maracanã, Martelo, Praia Grande e Ponta Grossa em Ilha de Maré ainda não foi efetivado devido à omissão do Incra e da União em proceder às medidas necessárias ao reconhecimento, à demarcação e à titulação das terras. O Brasil de Fato Bahia entrou em contato com o Incra, mas até o fechamento desta matéria não tinha obtido resposta. O canal segue aberto para manifestação do órgão.
Marizelha Lopes, ativista e uma das lideranças da comunidade de Bananeiras, conta que em agosto de 2004, a comunidade recebeu a certidão da Fundação Cultural Palmares, com esse documento em mãos, foi dada entrada no processo de titulação junto ao Incra. “Em 2007, o RTID [Relatório Técnico de Identificação e Delimitação] é concluído. Só em 2017 é publicado. E de lá para cá, o Incra estava na fase de notificações dos intrusos [não quilombolas] até o início desse ano”, conta.
Em 2008, o MPF iniciou um processo administrativo para acompanhar o caso, identificando exatamente o que relata Marizelha: até março de 2017, apenas a fase de elaboração e publicação do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) havia sido concluída. E até 2020, o edital de notificação dos não quilombolas havia sido publicado, não havendo nenhuma informação a respeito de outros andamentos.
A ativista da comunidade Bananeiras critica a morosidade da titulação. “Em tese, seria um território mais rápido de fazer todo o processo, porque Ilha de Maré é terreno de Marinha. Então, o Incra, em conjunto com a SPU [Secretaria de Patrimônio da União], se quisessem teriam condições de fazer um processo mais rápido e garantir o nosso território”, diz.
De acordo com dados oficiais publicados pelo próprio Incra, desde 2004, apenas 22 territórios quilombolas foram titulados, enquanto existem 1.857 processos de regularização abertos, sendo 371 só na Bahia.
Além do RTID, o processo realizado pelo Incra prevê ainda as etapas de: recepção, análise e julgamento de eventuais contestações apontadas pelos notificados; aprovação definitiva do RTID e publicação da portaria de reconhecimento que declara os limites do território quilombola; desintrusão de ocupantes não quilombolas mediante desapropriação ou pagamento de indenização e demarcação do território; e emissão do título de propriedade coletiva às comunidades quilombolas.
Ilha de Maré, bairro mais negro de Salvador
A Ilha de Maré, ao lado da Ilha dos Frades e Bom Jesus dos Passos, compõe os três bairros de Salvador localizados em ilhas na Baía de Todos os Santos. De acordo com o Censo 2022, a Ilha de Maré é o bairro mais negro da capital baiana, com mais de 90% da população autodeclarada preta ou parda.
“Ilha de Maré pertence ao município de Salvador, mas as políticas públicas não chegam aqui. Ilha de maré é uma zona de amortecimento e uma zona de sacrifício mesmo”, afirma Marizelha recorrendo ao conceito de “zonas de sacrifício”, utilizado para designar territórios prejudicados por danos ambientais e/ou desinvestimento econômico em nome de uma ideia de desenvolvimento econômico para a cidade ou o país.
No caso da Ilha de Maré, o território é impactado pela atividade de diversas empresas de exploração de petróleo e gás natural instaladas na região dos municípios de Candeias, São Francisco do Conde e Salvador, e cujos royalties não são necessariamente revertidos em benfeitorias para a ilha. Em reunião realizada em junho de 2023 pelo MPF, por exemplo, representantes da comunidade de Bananeiras informaram sobre o impacto negativo de 14 poços de extração de gás natural instalados dentro das áreas quilombolas.
Na ação civil pública movida contra o Incra, o MPF defende que a falta de titulação do território ocasiona uma situação de instabilidade, que se concretiza com os inúmeros casos de conflitos fundiários. “Com a morosidade do Incra, aumenta muito a desigualdade social, aumentam as especulações, aumentam as articulações de enfraquecimento da luta. E infelizmente cresce também a especulação imobiliária”, acrescenta Marizelha.
As comunidades e o MPF apontam também que a ausência de titulação das comunidades quilombolas impactam na prestação de serviços públicos, como saneamento básico, e compromete, inclusive, a integridade física, territorial e cultural das comunidades quilombolas de Ilha de Maré.
“Para vocês terem uma ideia, em 2010 é quando chega a unidade do PSF [Programa Saúde da Família] em Ilha de Maré. Antes disso, a gente não tinha atendimento à saúde de nossa população. E só o mês passado, a prefeitura constrói, num espaço cedido pela comunidade, o PA [Pronto Atendimento] de Ilha de Maré para atender as pessoas 24 horas”, conta Marizelha. Ela acrescenta, no entanto, que falta ao Pronto Atendimento recém-inaugurado a estrutura básica, como recepção, cozinha para os usuários e cantina para acompanhantes.
Em paralelo ao andamento da ação civil para a titulação do território, o MPF informou que segue acompanhando as comunidades e buscando soluções junto às empresas e aos entes públicos para suas necessidades. As diversas empresas que atuam na região e impactam na vida de Ilha de Maré foram notificadas para que informem sobre medidas mitigadoras, reparatórias e compensatórias dos impactos sócio-ambientais.
Edição: Alfredo Portugal