Bahia

Coluna

População pobre, tarifa cara, transporte sem qualidade: a Salvador dos projetos bilionários não conversa com a Tarifa Zero

Transporte coletivo em Salvador apresenta uma das tarifas mais caras do país - Senge
Transporte público vem perdendo passageiros, reduzindo frota e eliminando diversas linhas

* Por Juan Pedro Moreno Delgado, doutor em Engenharia de Transportes, professor e pesquisador do Departamento de Engenharia de Transportes e Geodesia da UFBA; Pablo Vieira Florentino, doutor em Urbanismo, professor associado do IFBA, campus Salvador; José Lazaro de Carvalho Santos, doutor em Urbanismo, professor adjunto na Escola Politécnica da UFBA

Salvador é uma cidade pobre onde 37% da população (sobre)vive com rendimento nominal mensal per capita de até 1/2 salário mínimo e cujo transporte coletivo apresenta uma das tarifas mais caras do país, com um valor acima de R$5. Ambos os fatores conjugados criam uma grande barreira econômica de acesso ao transporte e, consequentemente, exclusão sistêmica de parcela significativa da sociedade soteropolitana. Em paralelo, o transporte público vem perdendo passageiros transportados, reduzindo sua frota e eliminando diversas linhas nos últimos anos. Segundo dados dos Anuários de Transporte de Salvador, a frota do sistema de transporte por ônibus caiu de 2.478 veículos em 2012 para 1.786 em 2022, totalizando uma redução de mais de 25% da frota. Com isso, Salvador teria uma das piores relações ônibus por habitante entre as capitais brasileiras, ao mesmo tempo, a idade média da frota geral de veículos motorizados (carro, moto etc.) vem aumentando ano a ano, evidenciando uma baixa renovação do transporte coletivo nos últimos anos. Vale destacar que, entre 2016 e 2022, a média de novos ônibus adquiridos foi de aproximadamente 47 veículos/ano.

A migração do passageiro para outros modos de deslocamento, tais como os veículos que fazem viagens por aplicativos e a mobilidade a pé, ou por bicicleta, mesmo diante de tanta insegurança viária, foi produzida pelas carências crônicas em termos de eficiência e qualidade, no sistema: tempos elevados de viagem, rotas sobrepostas e ineficazes, longos tempos de espera, falta de conforto nos pontos, veículos e estações, risco de assaltos, superlotação etc. Afinal, historicamente, que qualidade foi oferecida ao passageiro em troca de uma tarifa excludente? Evidencia-se inclusive a concorrência de vans clandestinas que circulam livremente, em diversas áreas da cidade, sem que a fiscalização municipal lhes impeça de agir. Este transporte informal é praticamente reconhecido como alternativa popular frente ao descaso.

Por outro lado, o sistema metroviário já possui quase uma década de implantado e continua sendo subsidiado pelo Estado da Bahia, não conseguindo transportar os 500.000 passageiros diários necessários para a sua expansão futura. O Metrô sem dúvida é sustentável, porém foi implantado às pressas, com baixa inserção urbana, ou seja, o seu traçado está afastado das áreas residenciais, dependendo fortemente da integração intermodal com o transporte por ônibus e, com os modos ativos (a pé, bicicleta etc.), em menor escala. A integração entre metrô e ônibus foi viabilizada, a duras penas, por intermédio de Termos de Ajuste de Conduta (TACs) produzidos pelo Ministério Público. Sem dúvida, os equívocos e precipitação no desenho das licitações do transporte coletivo por ônibus são também causa da crise atual, pois estas foram definidas antes da finalização do Plano de Mobilidade Urbana de Salvador de 2017 (Planmob 2017).

Há alegação das empresas prestadoras de serviços de que a ineficiência operacional causa a queda de receitas através de uma planilha de custos (quase secreta) que apresenta supostos prejuízos, num sistema onde a tarifa é a principal fonte de remuneração. Ainda reclamam das gratuidades. O modelo de remuneração é o ponto central a ser revisto urgentemente. Surge aqui a necessidade de construir um sistema integrado de financiamento da mobilidade sustentável. Uma década após as Jornadas de Junho de 2013, que tiveram como causa principal o custo das passagens, vivenciamos um debate qualificado que consolidou o Sistema Único de Mobilidade (SUM), como proposta, inspirado em outros modelos, tais como, SUS e o SUAS. Já existem no Brasil mais de 100 cidades de pequeno e médio porte que garantiram a Tarifa Zero para seus habitantes e estão contabilizando avanços sociais e econômicos derivados do modelo de remuneração adotado, viabilizando a universalização do direito social ao transporte, previsto na Constituição Federal. Contudo, particularmente na cidade de Salvador, não se observa qualquer movimento do executivo ou legislativo no sentido da implementação da Tarifa Zero: apenas perdões milionários, fornecidos anualmente às dívidas que as empresas de ônibus contraíram com o município.

Evidentemente, seria menos prejudicial ao orçamento público e à população que o município de Salvador assumisse a operação do transporte público por ônibus na cidade, como já o fez, quando um dos consórcios operadores do sistema (CSN) declarou falência. Além dos subsídios já alocados, a Lei federal 12.587/12 prevê que as prefeituras definam outras fontes de recurso, como: cobrança sobre estacionamento em via pública, recursos de multas, créditos de carbono, taxação de carros de luxo que ocupam mais espaço público etc.

Atualmente, a sociedade observa a predominância de projetos de transporte público milionários (ou bilionários), isolados, polêmicos e sem articulação, muitos dos quais favorecem o transporte individual, prejudicando os modos ativos, transporte coletivo, meio ambiente e intensificando a segregação existente. Tais como os BRTs (bus rapid transit) e VLTs (veículo leve sobre trilhos), iniciativas municipais e estaduais fora de uma estratégia maior em nível metropolitano. A cultura de curto prazo, baseada em projetos desarticulados entre si, se sobrepõe ao planejamento de forma permanente, um problema de governança que se agrava com a falta de coordenação nas instâncias locais e estaduais para o planejamento, projeto e operação, dos futuros sistemas urbanos.

Cabe destacar que a Região Metropolitana de Salvador, apesar do seu porte e hierarquia urbana, carece de um Plano Metropolitano de Transportes de passageiros e cargas, fato gravíssimo que amplia as incertezas elencadas. Adicionalmente, o município de Salvador segue se negando a participar da Entidade Metropolitana responsável pelo planejamento e integração das 13 cidades componentes da Região Metropolitana de Salvador (RMS), fragilizando todo o processo iniciado em 2014.

Portanto, evidencia-se, atualmente, em pleno século 21, que qualquer solução tecnológica de engenharia no futuro terá que contemplar as escalas metropolitana e macrometropolitana, compatibilizando as futuras demandas de carga e passageiros. Esta visão integrada deverá resgatar a importância do planejamento integrado do transporte e uso do solo, não sendo mais sustentável implantar de forma isolada apenas uma linha ou ligação, mas sim, pensar uma Rede ampla que atenda, principalmente, as necessidades logísticas e de mobilidade futuras para a RMS. Não podemos insistir nos projetos autônomos que, a muito custo, terminam formando colchas de retalhos repletas de lacunas. A ausência crônica de Planejamento comprometerá a qualidade dos serviços que serão outorgados ao cidadão, no futuro. São urgentes, portanto, ações estruturantes e priorização de investimentos em consonância com as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana. Vivemos como se esta importante Política Nacional inexistisse, sendo solenemente ignorada pelos poderes executivos. As greves promovidas pelos rodoviários (que sofrem com péssimas condições de trabalho, inclusive assaltos diários nos ônibus) vêm seguidas de aumentos na tarifa, e não servem para questionar a ineficiência e falta de qualidade do sistema como um todo, pois o Conselho Municipal dos Transportes, praticamente não atua no debate e deliberações sobre as questões do sistema.

Em síntese, os planos urbanos e da mobilidade desenvolvidos em Salvador carecem de uma visão global e não favorecem à gestão integrada que a cidade necessita. Diversas estratégias de gestão podem ser estudadas, as quais deverão integrar objetivamente o setor empresarial rodoviário e metroviário, o taxista, o ciclista, o pedestre, o transporte marítimo e, tardiamente, a ampliação do transporte vertical. Todas as formas de deslocamento têm importância no Sistema de Mobilidade e, portanto, devem ser atendidas. Uma nova Rede de maior complexidade em relação à existente deve ser construída. O cenário descrito indica a necessidade urgente de uma autoridade ou entidade metropolitana, da mobilidade, que coordene as ações dos diversos atores da mobilidade e do desenvolvimento urbano (públicos e privados), harmonizando interesses, visando implementar a futura rede integrada da metrópole.

A construção de consensos que viabilizem um modelo de cidade, mais equitativa e acessível, constitui-se na principal barreira para a formulação de políticas integradas, ou seja, criar as condições para uma metrópole mais justa e sustentável. Entretanto, apesar de termos Planos Diretor e de Mobilidade Urbana (Planmob Salvador 2017), observa-se, particularmente, na cidade de Salvador, a ação eficaz do empreendedorismo urbano, determinando as futuras localizações, redes de transporte e funções urbanas. A falta de regulação municipal do solo urbano e dos atores envolvidos agrava este cenário, amplificando-se a segregação urbana existente, as distâncias e, por conseguinte, a dispersão das atividades urbanas, o qual impactará negativamente na qualidade e na tarifa dos sistemas de transporte público, sejam eles rodoviários ou metroferroviários, seja em nível urbano ou metropolitano.

Edição: Gabriela Amorim