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“Tudo o que é segredo, há encanto. Quando o segredo acaba, acabou o encanto”

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Imagens da Nebulosa de Carina
Imagens da Nebulosa de Carina - Divulgação/NASA/ EBC
Não tem como dissociar o que produzimos no real daquilo que imaginamos, criamos

Este texto é mais um trabalho de associação livre a partir de uma provocação de uma amiga que pediu que comentasse um texto que escreveu. Eu juntei com algumas palavras que têm me rondado por dias. Tenho gostado da ideia de não fazer edições e ligações perfeitas entre parágrafos porque os pensamentos não funcionam assim e nem a vida. Então, farei ensaios caóticos em alguns momentos. Quem sabe um dia chego a deixar as palavras criadas pela ação do meu inconsciente sem os corretores do Word. Essas são as palavras que têm me mordido ultimamente: espiritualidade, mistério, realidade, imaginação, bio-fobia, tradição.

O real é uma produção daquilo que imaginamos, constituímos simbolicamente e não tem como dissociar o que produzimos no real daquilo que imaginamos, criamos. Quando Stuart Hall fala em comunidades imaginadas e narrativas que se transformam em verdades, mas são como uma espécie de ficção, penso que estamos vivendo no real uma espécie de ficção e uma comunidade imaginada que tem produzido uma certa fobia da vida. Mesmo tendo alguns seres e organismos que se predispõem a tecer a vida, não tem como retirar desses organismos a pulsão destrutiva. Pulsão de vida e pulsão destrutiva estão na formação do mundo, dos sujeitos em suas diversas formas de existir. Sentindo o mundo como se mostra hoje, parece que a pulsão destrutiva ganhou uma expressividade assustadora a ponto de perguntarmos se de fato temos algum amor pela vida. Se ainda somos capazes de lidar com suas vicissitudes e mistérios.

Ao que parece, estamos localizando e condensando isto em uma imagem a partir de vestígios históricos que nos fazem criar uma narrativa sobre processos de colonização e escravidão bem datados. Trazendo um pouco as formulações de uma psicanálise amefricana, como é que deixamos de ser escravizados pelas concepções de um grande Outro que se constituiu como lei universal e do qual temos analisado e tentado produzir alguma elaboração sobre a complexidade que temos experimentado?

Esse grande Outro que concebemos racializado e atravessado por recortes de gênero tem sido o homem branco, hetero, cis e europeu do qual se tem falado, não sem justificação, maciçamente. Essa é uma imagem que se condensa e em que muitas coisas são condensadas nela, a partir dela muitas coisas se proliferam e as entendemos como necrófilas. Penso que nossos esforços devem partir da dissolução da imagem desse grande Outro que ainda conforma as nossas subjetividades, nos faz pensar em soluções para o mundo, para essa produção de destruição coletiva, ainda estando arraigados a esta imagem condensada e pretensamente universal.

Há que se pensar em ações mais efetivas no sentido de políticas que tentem dar conta desta complexidade, mas passa também por uma análise coletiva (não sem arranhões, não sem tensionamentos, não sem constrangimentos) de como nós temos respondido e nos colocado ainda neste lugar de escravizados de uma concepção de mundo que produz uma certa fobia da vida.

Sentimos repulsa por coisas simples, preferimos as ostentações seja lá quais forem, temos odiado os povos ligados à terra, evitamos estar na presença das pessoas apesar das solidões, experimentamos o pavor à natureza, o convívio com sujeitos e seres diferentes de nós. Queremos obsessivamente racionalizar tudo o que nos acontece sem margem para a magia, para uma relação com o mistério que não passe pelo total controle daquilo que se experimenta.

Não era este o assunto, mas achei oportuno mencionar o quanto as religiões de matrizes africanas são atacadas. Primeiro por serem estes quilombos que resistem ao tempo nos lembrando que a luta pela liberdade é constante. Segundo porque preservam as tradições e fundamentos de um certo modo de viver que emana amor à vida. São atacadas por guardar uma relação com o sagrado, com o mistério, com as tradições que manifestam profundo amor e respeito a todas as formas de existir, à simplicidade que a energia das divindades nos faz perceber como riqueza do ser, de entender a natureza como sendo a própria manifestação das divindades. Não se tem candomblé sem axé, não se tem axé sozinho, sem estar em comunhão e formando laços. E não se explica racionalmente o transe, a comunicação com o oculto e o mistério. O culto as divindades é um modo de aprender a dar e encontrar caminhos para o que se vive, aprender a lidar com a vida, suas vicissitudes e mistérios. E estar disposto a isto é correr riscos próprios de quem está e percebe-se vivente, vivendo. Evitar os riscos a todo custo, ao custo da vida, é uma ode à matança da psíquica à física.

“Tudo o que é segredo, há encanto. Quando o segredo acaba, acabou o encanto”, esta frase eu escutei do Doté Zé de Gbessen e parece sintetizar um pouco o que tentei livremente associar aqui com os mistérios e a obsessiva racionalização que tira o encanto pela vida. Aproveito o ensejo para saudar ao Doté Zé de Gbessen pelos seus 50 anos de vida religiosa dedicados ao culto aos voduns da nação Mina Jeje. Jubileu de Ouro para quem resiste às tentações modísticas dos tempos, aos ataques racistas e de um mercado especulatório que a tudo depreda, preservando as tradições e fundamentos de uma riqueza sem precedentes. Sua história é, está sendo e será sempre lembrada. Abenói, Doté!

Edição: Gabriela Amorim