Bahia

Coluna

Revisão do PDDU: tensões e interesses no Centro Antigo de Salvador

Os movimentos sociais tensionam a lógica excludente e racista de privatização e elitização do centro de Salvador - Romildo de Jesus
Defendemos outro modelo para a cidade, em que o trabalhador não venha para cá apenas para trabalhar

Por Aparecida Netto Teixeira, Camille Oliveira Silva Gama, Laila Nazem Mourad e Carlos Andrés Díaz Mosquera

“Nós defendemos um outro modelo para a cidade, em que o trabalhador não venha para cá apenas para trabalhar, mas que ele possa também ter o direito de morar e de usufruir do centro da cidade como um todo”.

O Centro Antigo de Salvador, primeira capital do Brasil, é um território marcado pela identidade e ancestralidade negras. Entretanto, ao longo dos anos, os diversos planos de recuperação e reforma, sejam públicos ou privados, não levaram em conta a população negra moradora do centro. Há uma investida, cada vez maior, do capital privado no tecido urbano preexistente em associação direta com os poderes públicos estadual e municipal, ancorada, única e exclusivamente, na lógica empresarial. O que se constata é a prática autoritária alheia à função social da propriedade e à democratização do acesso à terra urbana. O modelo atual insiste em ser negacionista e racista. Mas a população insiste e resiste.

A Prefeitura Municipal de Salvador, de modo pífio, desconsidera as ocupações existentes no Centro Antigo de Salvador. Delimitou no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU/2016), somente três Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) ocupadas e nenhuma ZEIS de vazio, ainda que existam 1.100 imóveis em estado de vacância (sem uso/subutilizados), sem nenhuma aplicação dos instrumentos urbanísticos previstos pelo Estatuto da Cidade.

Por outro lado, desde 2015, registra-se o processo de aquisição de 123 unidades imobiliárias da rua Chile, pelo Grupo Fera Empreendimentos, acompanhado de projetos de arquitetos de grife, com vistas à transformação da área em um grande complexo turístico. São eles: Fera Palace Hotel; Premium Car Park; Fera Residencial; Empresarial Rua do Tesouro; Empresarial Ladeira da Praça; Empresarial Ed. Triunfo; Empresarial Ed. Barreiro; Cinearte; Palacete Tira Chapéu; Casarões; Espaço Sodré.  Existe, de fato, um monopólio de imóveis na mão deste grupo que conta com o aporte financeiro do Estado, através da Desenbahia – Agência de Fomento do Estado da Bahia S.A.; Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES), entre outros.

Essa estratégia empresarial pode ser constatada também no caso do Grupo Prima Empreendimentos que adquiriu, em 2007, o antigo prédio do jornal do A Tarde, na praça Castro Alves, hoje, Hotel Fasano Salvador, com obras no valor de R$ 85 milhões, em parceria com a JHSF (empresa do setor imobiliário de alta renda), e com financiamento do Banco Nordeste do Brasil, em uma linha criada desde 1988, que tem como principal aplicação contribuir para a diminuição da pobreza e das desigualdades sociais. Pergunta que não quer calar: Que tipo de contribuição esse hotel de luxo está trazendo para diminuição das desigualdades sociais no Centro de Salvador?

Nessa mesma lógica, em dezembro de 2021, o governo do Estado da Bahia publicou o edital de concessão do Palácio Rio Branco (antiga sede do governo da Bahia) por 35 anos, para implementação de outro hotel luxo. Em fevereiro de 2022, concluiu a concessão onerosa pela BM Varejo Empreendimentos Spe S.A., a qual é responsável pela implantação do megacomplexo de luxo Cidade Matarazzo, em São Paulo (SP).

Os movimentos sociais, por sua vez, tensionam essa lógica excludente e racista. São movimentos ativos no território, que, de forma contínua, constroem outras propostas agregando as particularidades, mas com um sentido comum de luta pela moradia social. É a luta de muitos, a exemplo da atuação da Articulação do Centro Antigo de Salvador que reúne sete movimentos e comunidades: Movimento dos Sem Teto da Bahia (MSTB); Artífices da Ladeira da Conceição da Praia; Centro Cultural Que Ladeira é Essa?; Coletivo Vila Coração de Maria; Movimento Nosso Bairro é Dois de Julho; Associação de Moradores e Amigos de Gegê da Gamboa de Baixo e a Associação  Comunidade  Monsenhor  Rubens Mesquita do Tororó.  

Esses movimentos propõem tratar a luta por moradia, a partir de uma visão intersecional, analisando como os vários sistemas de opressão que incidem na “questão da raça ou etnia, classe social, capacidade física, localização geográfica, entre outras, se relacionam entre si, se sobrepõem e demonstram que o racismo, o sexismo e as estruturas patriarcais são inseparáveis e tendem a discriminar e excluir indivíduos ou grupos de diferentes formas”, como disse Júlia Ignácio, no artigo “O que é interseccionalidade?”.

A luta e resistência dos movimentos sociais é pautada por incidências políticas abrangendo a realização de audiências, protestos, atividades culturais, processos educativos, bem como as ocupações de espaços vazios, sejam terrenos baldios ou edifícios abandonados.

Em outubro de 2023, a Articulação do Centro Antigo de Salvador organizou a Audiência Pública Popular “Viver, Morar, Trabalhar no Centro Histórico e Centro Antigo de Salvador” e convidou representantes de entidades, instituições e órgãos públicos para debater as questões relacionadas à participação, habitação social, cultura, turismo e permanência da população negra no território. Apesar da ausência de instituições públicas que atuam diretamente no Centro Antigo (Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia – IPAC; Secretaria Estadual de Urbanismo - SEDUR e Secretaria Municipal de Cultura e Turismo - SECULT), os movimentos construíram uma pauta, juntamente à Defensoria Pública e Ministério Público Estadual, com a proposição de criação do Núcleo Popular de Mediação de Conflitos Fundiários, para assegurar a moradia no centro.

Essas ocupações não são apenas uma forma de pautar o problema da habitação, mas também uma afirmação do direito da população negra de habitar o Centro Antigo.  Existem atualmente nove ocupações no Centro Antigo, as quais têm em média dez anos de existência, localizadas em área de Proteção Cultural e Paisagística, sendo que  quase  a metade está em áreas definidas como patrimônio tombado. São elas: IPAC 1; IPAC 2; IPAC 3; Liberdade; Guerreira da Rua das Flores; Pelourinho; Baixa dos Sapateiros; Lula Livre, incluindo a Ocupação Carlos Marighela que será abordada neste artigo.

Em junho de 2021, em plena pandemia da COVID 19, mais de 200 famílias sem teto, formaram a Ocupação Carlos Marighela, no antigo Centro Educacional Magalhães Neto, pertencente à Embasa (Empresa Baiana de Águas e Saneamento S.A), localizado na Avenida Sete de Setembro, no Centro Antigo de Salvador, abandonado há mais de seis anos. A Ocupação nasce, então, como uma manifestação da parcela excluída, que cansada de ser posta à margem, busca por si mesma garantir o direito que lhes é negado, de forma digna e organizada. Em sua maioria composta por mulheres, mães solos e crianças.

“Nós defendemos um outro modelo para a cidade, em que o trabalhador não venha para cá apenas para trabalhar, mas que ele possa também ter o direito de morar e de usufruir do centro da cidade como um todo”, conforme destaca o líder da ocupação. A ocupação materializa a luta urbana que reivindica, não somente a moradia, mas também se propõe a discutir o direito à cidade, enquanto ato de resistência que desafia a lógica urbana de transformação das cidades em acumulação de capital.

A ocupação está localizada em um local de grande interesse turístico e cultural; próximo ao cinema Glauber Rocha e ao Hotel Fasano, tensionando o direito da coletividade de habitar o Centro Antigo. A permanência da Ocupação, em um local marcado por manifestações de resistência, desvela os conflitos de classe social, raça e gênero, já que aqueles que pagam aproximadamente o valor de mil e quinhentos reais por uma diária em um quarto mais simples do Hotel Fasano são majoritariamente pessoas brancas e abastadas, que consideram esses grupos sociais como perigosos e violentos, perpetuando a visão de cidade racista.

Importante ressaltar que, em uma ocupação urbana, emerge um processo emancipador singular. Nesta, a organização assume diversas formas impulsionadas pela convivência e solidariedade. O que torna essa experiência tão rica é a complexa teia de relações que se estabelece: desde a organização social e espacial até as dinâmicas políticas, de vida, trabalho e sobrevivência. Nesse contexto, a ocupação transcende a visão individualista da sociedade, abrindo espaço para uma abordagem coletiva e colaborativa ao se pensar o mundo e as formas de organização diferentes do padrão de uma sociedade capitalista individualista. Buscam, desse modo, ressignificar as relações sociais, espaciais e políticas.

A Ocupação Carlos Marighela é assessorada pelo Serviço de Apoio Jurídico da Bahia (SAJU), vinculado à Universidade Federal da Bahia, e a Defensoria Pública do Estado. Na ação de reintegração de posse movida pela Embasa, a empresa utiliza a retórica de que é proprietária legítima e possuidora do imóvel e, em nenhum momento do processo busca se debruçar sobre a principal alegação dos ocupantes: o não cumprimento da função social do imóvel.

Além disso, como forma de punição e constrangimento aos ocupantes, “requer a condenação dos acionados ao pagamento do valor atribuído à causa de 8.766.374,17 (oito milhões, setecentos e sessenta e seis mil, trezentos e setenta e quatro reais e dezessete centavos), além de custas processuais e honorários advocatícios”.

A violência apresenta-se no processo, não apenas em petição inicial, mas também em outros documentos, quando a empresa formula o pedido de reintegração de posse com auxílio do Comando Geral da Polícia Militar e Conselho Tutelar. Esse ato só não ocorreu em função da articulação nacional Campanha Despejo Zero, que resultou na decisão do Supremo Tribunal Federal (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 82832), de suspender as remoções no período de pandemia. Até o momento, o processo segue em Segunda Instância, pois a Embasa propôs Embargos de Declaração contra a decisão que assegura que a reintegração de posse só será possível após assegurado o direito à moradia das famílias ocupantes.

Nesse contexto, o governo do estado, através da Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (SEDUR), apresenta uma proposta “indecente” à comunidade que consiste na negação da permanência das famílias no Centro Antigo. Indaga-se: por que o poder público municipal não aplica à Embasa os instrumentos urbanísticos previstos no Estatuto da Cidade, relativo ao não cumprimento da função social da propriedade?

A resistência dos movimentos sociais e a luta pela moradia no Centro, abordadas neste artigo, são importantes nesse momento atual de revisão do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Salvador (2016), partindo-se do princípio de que a “cidade é nossa”, e tendo como perspectiva o direito da população negra de habitar o patrimônio.
Ao refletirmos sobre a habitação social no Centro Antigo de Salvador, é, portanto urgente que a municipalidade amplie a delimitação de ZEIS e regularize as já existentes, com efetiva escuta e participação dos movimentos, afirmando este território negro como um vetor de coesão e lugar social, evitando os processos de despossessão, as inutilidades e o abandono dos imóveis, permitindo, assim, o processo de democratização do acesso à cidade.

Edição: Gabriela Amorim