Bahia

Violência policial

Caso Menino Joel: Júri popular condena ex-policial militar a 13 anos de prisão

Tenente que comandou a ação que resultou na morte do garoto foi absolvido pelo mesmo júri

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Familiares e representantes de organizações populares cobram por justiça em frente ao Fórum Ruy Barbosa durante julgamento do caso - Jamile Novaes/Instituto Odara

Após 13 longos anos de espera e dois dias de julgamento, chegou ao fim na noite da última terça-feira (7) o júri referente ao caso do menino Joel Conceição Castro, criança negra de apenas 10 anos, morto por um disparo de arma de fogo durante ação policial no Nordeste de Amaralina, em Salvador (BA), em novembro de 2010. O tiro atravessou a janela e atingiu o garoto dentro do próprio quarto.

A sentença, anunciada pela juíza Andréa Sarmento por meio de decisão do júri popular, condenou o ex-policial Eraldo Menezes de Souza, responsável pelo disparo que vitimou o menino, a 13 anos e 4 meses de prisão, iniciando em regime fechado, por homicídio doloso qualificado por impossibilidade de defesa da vítima. No entanto, ele poderá recorrer da sentença em liberdade, o que pode atrasar o efetivo cumprimento da pena. Já o tenente Alexinaldo Santana Souza, que comandava a operação, foi absolvido, a partir do entendimento do júri de que a morte de Joel não foi sua responsabilidade.

Para a assessoria jurídica do Odara – Instituto da Mulher Negra, que atuou como assistência de acusação do Ministério Público da Bahia (MP-BA) no caso, a condenação de Eraldo Menezes foi uma sentença cabível, considerando que o corpo de jurados acatou o quesito de homicídio doloso – quando há intenção ou risco de morte – sendo que havia o risco de a tese de disparo acidental ter sido acatada, o que reduziria ainda mais a pena. “Quando você atira para uma casa, você assume o risco de ferir alguém. E foi exatamente o que aconteceu”, comentou a advogada e ativista do Instituto (não identificada nesta matéria por protocolo de segurança da organização).

Quanto à absolvição do tenente Santana, a assistência de acusação defende que a sentença não é compatível com as provas que constam nos autos do processo. “Existem provas de que ele era o responsável por aquela ação e, durante o júri, ele falou que ordenou a ‘chuva de tiros’ que aconteceu próximo à casa da vítima”, afirma.

A mãe do menino Joel, Miriam Moreno da Conceição, ressaltou que a condenação cria uma sensação de resistência, encoraja a luta por direitos para o povo negro e chama a atenção para a necessidade de formar policiais mais bem preparados e com empatia “que não cheguem na sociedade e pensem que somos qualquer um, porque somos vidas e vidas importam”.


Joel Castro, pai do menino Joel, e familiares em frente ao Fórum Ruy Barbosa logo após a sentença / Jamile Novaes/Instituto Odara

Acusação negou confronto e rebateu criminalização do Nordeste de Amaralina

Durante duas horas e meia, a promotoria sustentou a acusação no Júri. Os representantes do MP-BA reforçaram a inexistência de um confronto durante a incursão da guarnição no Nordeste de Amaralina, especialmente por não existir um registro na Central de Comunicação da corporação que comprove um chamado ao local na noite do crime para verificar a presença de homens armados, como os policiais haviam argumentado.

O MP-BA declarou que houve a tentativa de aplicar a versão de que Joel foi morto por traficantes, mas não havia traficantes, não houve troca de tiros, e a comunidade viu que os policiais chegaram distribuindo saraivada de tiros.

Também foram demarcadas as contradições entre os depoimentos dos réus e dos demais policiais envolvidos na ação. Isso porque há diferentes versões sobre um suposto grupo de homens, bem como a quantidade destes, que teriam atirado contra as guarnições. Os policiais não foram capazes de informar as características físicas ou tipo de armamento que teria sido utilizado pelos suspeitos.

A acusação rebateu ainda a narrativa apresentada pela defesa durante os questionamentos feitos às testemunhas na fase de instrução, na última segunda-feira (6), que tentou caracterizar o Nordeste de Amaralina como um território violento.

A promotoria então pontuou que o bairro não é sinônimo de marginalidade, de confronto, ou de perigo para a polícia. O MP-BA argumentou ainda que embora tenha sido perguntado para as testemunhas sobre ‘a lei do silêncio’ na comunidade do Nordeste, é notável também o silêncio da tropa que acompanhava os dois réus, já que os  demais policiais que participaram da operação e eram réus durante a instrução processual, não testemunharam durante o júri.

O promotor comentou ainda, que nestes 13 anos após o crime, os réus, Eraldo e Alexinaldo, seguiram suas vidas, enquanto a família de Joel ainda permanece marcada por esta tragédia. “Esses dois homens [os réus] tiveram oportunidade de refazer suas vidas, fazer filhos, ver o crescimento deles. Mas Seu Joel nunca mais vai poder ver o filho dele”.


Miriam Moreno da Conceição, mãe do menino Joel / Jamile Novaes/Instituto Odara

A sustentação da acusação lembrou os jurados das diferenças de abordagem da Polícia Militar entre bairros de população majoritariamente branca e rica, e majoritariamente negra e pobre. Conforme mostra o levantamento feito pela Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas em 2021, a Pituba aparece com um índice de apreensão de drogas maior que em bairros como o Nordeste de Amaralina. Ainda assim, o bairro nobre teve zero homicídios, enquanto o outro registrou 58 no ano analisado.

O saldo da operação que resultou na morte de Joel, por exemplo, foi de zero gramas de drogas apreendida, e apenas uma arma, que foi periciada, concluindo que nenhuma das cápsulas encontradas no local teria partido dela.

Defesa tentou convencer júri a considerar o homicídio culposo

Na vez da defesa, o advogado Bruno Bahia, que representava Eraldo Menezes, tentou convencer o júri de que, apesar de ser inquestionável que o ex-PM foi o autor do disparo, essa não foi sua intenção, considerando o caso assim como homicídio culposo (quando não há intenção de matar, ou responsabilidade direta sobre a ação). Em seus depoimentos, o agente afirma que disparou em decorrência de um escorregão acidental.

“A gente acredita que essa é uma linha de argumentação falida, porque se você chega atirando para todos os lados num lugar onde moram várias pessoas, você assume o risco efetivo de atingir alguém”, avalia a assistência de acusação.

Já a defesa do tenente Alexinaldo utilizou seu tempo de sustentação para descredibilizar a denúncia oferecida pelo MP, classificada como “show de horrores”. O grupo de advogados argumentou que o comandante da operação não teria dado nenhuma ordem direta para que fosse efetuado o disparo contra a casa de Joel, nem estaria presente quando o socorro foi negado.

“Existe uma grande diferença entre coordenar e controlar como se fossem fantoches. Eraldo não imaginava e não tinha a intenção de escorregar e acertar Joel. Se nem Eraldo tem dolo, imagine Alexinaldo. Que culpa ele tem? Em nenhum momento a ordem de ceifar a vida de uma criança foi dada”, discursou um dos assistentes de defesa do tenente.


Ato organizado pelo Instituto Odara pedindo Justiça Pelo Menino Joel e outras crianças vítimas da letalidade policial em frente ao Fórum Ruy Barbosa / Jamile Novaes/Instituto Odara

A absolvição do tenente Santana abre um questionamento acerca da responsabilização de comandantes da polícia sobre os resultados das ações realizadas por suas guarnições. “Se há uma ação bem sucedida da PM, quem recebe os louros é o comandante. Quando uma ação é mal sucedida, o comandante não responde por isso? Se qualquer soldado sob o comando dele se retirasse, não iria responder pelo crime de insubordinação?”, questiona a advogada da assistência jurídica do Instituto Odara.

A omissão do socorro ao menino Joel, denunciada nos autos do processo e reafirmada pelas testemunhas de acusação durante o júri, também foi um ponto que levantou o debate sobre a postura e responsabilidade do tenente durante a ação. “Houve uma demora na prestação de socorro, que poderia ter sido fundamental na salvaguarda da vida de Joel. Mas foram os policiais sob o comando de Alexinaldo que não deram socorro. E demonstramos nos autos que ele estava presente”, explica a assistente de acusação.

Tentativas de criminalizar o Nordeste de Amaralina

A tentativa de caracterizar o Nordeste de Amaralina como um território violento, dominado pelo tráfico de drogas, e onde corriqueiramente a polícia é recebida a tiros, predominou no discurso da defesa do tenente Alexinaldo no primeiro dia de julgamento. Como se esse contexto justificasse os possíveis “efeitos colaterais” da atuação das forças de segurança do Estado.

No segundo dia, em diversos momentos a defesa tornou a conduzir o debate para a atuação de grupos criminosos em bairros periféricos, como se a mesma presença não fosse constatada em bairros nobres da capital baiana.

Para a assistência de acusação, o discurso não passou despercebido. “A acusação foi muito boa em demonstrar os dados da Secretaria de Segurança Pública [sobre a apreensão de drogas em bairros como a Pituba ser muito maior que no Nordeste de Amaralina, mas sem mortes por intervenção policial]. É criminalizar territórios para matar livremente. Argumentamos que em determinados territórios a intervenção é inteligente e em outros, é violenta”.

A promotoria chegou a argumentar que tudo o que a defesa queria era transformar a comunidade do Nordeste de Amaralina na comunidade da desordem para justificar a ação truculenta da PM no bairro.

Aos jurados, Vivaldo Amaral, advogado do tenente Alexinaldo, criticou organizações que tentam “demonizar” a Polícia Militar. “O crime virou metástase. Sabe quem vai ser atingido pelo crime? Nós. Porque estamos jogando a Polícia Militar à vala comum. Existe um movimento para demonizar a polícia”. O advogado tentou emplacar a narrativa de que os agentes estão com medo de fazer seu trabalho, e que votar por condenar Alexinaldo representaria mais um passo nessa direção.  

O mesmo advogado também protagonizou diversas falas discriminatórias no decorrer da sustentação. Ao comentar sobre frequentar territórios periféricos, afirmou que “às vezes tem pobres que são mais limpos, decentes e honestos do que muitos ricos”.

Em outro momento, pediu que os jurados absolvessem seu cliente, argumentando que a Bahia gasta mensalmente R$ 3.273 com uma pessoa encarcerada, o que não valeria à pena no caso de alguém que não foi o responsável pelo disparo que tirou a vida da vítima. O valor seria menor do que o advogado paga “à uma pessoa que me serve”, em provável alusão aos serviços de uma trabalhadora doméstica.

“Acho que existe o limite da ética que alguns advogados ultrapassam. Existem comentários elitistas que foram incorporados ao nosso dialeto enquanto sociedade e naturalizados. Nós, que somos ativistas, conseguimos depurar criticamente esse tipo de argumento, mas ele pode ter passado ao largo de várias pessoas que estavam ali”, ponderou a assistência de acusação.

Réu também responde por chacina no Nordeste de Amaralina

O homicídio do menino Joel não foi o único crime pelos quais o ex-policial militar Eraldo Menezes de Souza e o tenente Alexinaldo Santana Souza são acusados. Em abril de 2021, o Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA) decidiu que o ex-PM Eraldo e mais 11 agentes irão a julgamento popular pelas mortes de quatro jovens, também do Nordeste de Amaralina, também em 2010. Todos os envolvidos foram denunciados por homicídio qualificado (motivo torpe e impossibilidade de defesa), além de fraude processual. Eles ainda respondem por tentativa de homicídio de um jovem que sobreviveu ao ataque.

Eraldo Menezes de Souza é apontado também como um dos autores do homicídio de Camila Ferreira Nobre, cujo processo foi arquivado em 2021, por prescrição do caso.

Já o tenente Alexinaldo já foi preso por crime de estelionato, em 2011, acusado de fazer parte de uma quadrilha de clonagem de cartões de crédito. O agente também já respondeu processo por invasão de domicílio na efetuação de uma prisão por apreensão de drogas, e um outro por auto de resistência. Segundo ele, o primeiro já está prescrito, e o segundo foi arquivado.

No primeiro dia do júri, a promotoria indagou o tenente Alexinaldo a respeito das acusações, gerando irritação no advogado de defesa, Vivaldo Amaral, que se exaltou ao questionar a relevância das perguntas para aquele júri. Em contrapartida, em seus interrogatórios às testemunhas de acusação, Vivaldo insistiu em questionar qual “organização criminosa” comandava o Nordeste de Amaralina, se consideravam que o bairro estava “pacificado”, e se eram comuns trocas de tiro entre policiais e traficantes.

Enfrentando a letalidade policial na Bahia

O homicídio do menino Joel em decorrência de uma ação da Polícia Militar da Bahia não é um caso isolado. Em 2023, o Instituto Odara, através do projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar, lançou o documento “‘Quem vai contar os corpos?’: Dossiê sobre as mortes de crianças negras como consequência da atuação da Polícia Militar da Bahia”.

Além do caso de Joel, o dossiê apresenta as histórias de pelo menos outras 12 crianças e jovens negras e negros mortos em ações realizadas pela PM-BA em Salvador e Região Metropolitana da Bahia, nos últimos 20 anos, e justificadas como conflitos armados para combater o tráfico de drogas.

As ocorrências, no entanto, não se restringem ao estado da Bahia. Dados do Anuário da Violência (2023) apontam que 83% das mortes provocadas por agentes do Estado no Brasil em 2022 vitimaram pessoas negras, das quais 76% tinham entre 12 e 29 anos. O dado revela que a juventude negra está no centro da ação letal das forças de segurança pública brasileira.

O mesmo levantamento apontou também que a Polícia Militar da Bahia passou a ser considerada a mais letal do país, sendo responsável por 22,77% de toda a letalidade policial do país, ultrapassando o número de mortes provocadas pela PM do Rio de Janeiro, que historicamente ocupava o topo do ranking.

É em meio a esse cenário que o projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar vem atuando desde 2014 no apoio, articulação, fortalecimento e diálogo com as mães de jovens assassinados em decorrência da violência, na assessoria jurídica para famílias atingidas pela violência e letalidade policial e na formação política para as juventudes negras das comunidades do Cabula e Nordeste de Amaralina, em Salvador.

O Instituto Odara tem realizado o acompanhamento dos familiares do menino Joel durante os últimos anos e defende que a condenação do policial Eraldo Menezes, embora não altere a realidade de violência policial existente no estado, é importante para demonstrar que existe uma mobilização em torno da responsabilização e execução dos julgamentos dos crimes cometidos pela PM-BA.