Lá se vão 27 anos que criei o Cabaré da RRRrraça, junto com Chica Carelli, Jarbas Bittencourt, Zebrinha e o elenco do Bando de Teatro Olodum. Muita coisa mudou, mas a peça continua a ser útil. Ela coloca em questão em sua premissa inicial: “o que é ser negro? Mas antes, o que é ser negro no Brasil?”. Com isto, fala de si e do outro.
Foi criada para resolver crises. Tive a ideia e vontade de fazê-la bem antes de propô-la ao grupo. Discutíamos, por seis meses, “o que é ser Bando? O que é ser Bando em relação ao Olodum? O que é ser um grupo e continuar a trabalhar sem outros recursos financeiros além do retorno da bilheteria, venda de espetáculos, ou pequenos apoios pontuais? Então, Jorge Washington diz: “vamos parar, quero fazer teatro”. Foi a deixa: propus Cabaré.
A ideia veio a partir da revista Raça. Com sua primeira edição esgotada na semana de lançamento, apontava um nicho de mercado. Vendendo produtos de beleza para cabelos e peles negras, moda étnica, artistas, celebridades e pontos de vista negros, vendeu bastante. Havia um público negro com poder aquisitivo que precisava de referências para consumir. Daí o outro questionamento da peça: o negro é consumidor ou objeto de consumo?
A essas questões, outras subjacentes surgiam. Não queríamos oferecer respostas, mas inquietação. Como na tradição do teatro de cabaré, entre risos e deleite da plateia, gatilhos para a reflexão, como um efeito residual, sobre o racismo brasileiro. “Sobre ser negro” era isso, sobre sofrer cotidianamente desde o nascimento os efeitos perversos da discriminação pela alteridade.
Nesses 27 anos, recebi e recebo, de várias pessoas pretas, brancas e mestiças, declarações sobre a descoberta de sua própria identidade a partir da peça, ou de como conviveram com o racismo – marca milenar de nossa cultura ocidental judaico-cristã – como se fosse uma coisa natural.
O Cabaré da RRRrraça surgiu de uma crise do grupo como coletivo, como estética, como poética e como política, e várias outras crises se acumulavam nesta crise. A crise de um país que ainda, depois de 500 anos, não sabe, como nação, o que fazer de seus pretos.
É preciso colocar o dedo na ferida com a intenção de curá-la, resolver a marca da escravização, não tentar apagá-la apagando seus documentos. Ao teatro cabe fazer perguntas, falar de suas contradições, como por exemplo: por que foi um artista não negro que propôs ao Olodum criar um grupo de teatro negro e dirigi-lo por 23 anos e, ao grupo, montar peças para dar voz a inquietações que devem ser de todos os brasileiros, não somente de uma parcela? Cabe ao público, acionados os gatilhos por essas questões, construir respostas e soluções para o país.
Edição: Gabriela Amorim