Bahia

Coluna

Empreendedorismo urbano em Salvador: problemas e limites como estratégia de desenvolvimento socioespacial

Vista da Gamboa - Jingtianyi Ma
Turismo e atividades lúdico-culturais assumem contornos econômicos importantes para a cidade

Por Rafael de Aguiar Arantes
Professor do departamento de sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFBA. Pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades (CRH/UFBA) e do Observatório das Metrópoles - Núcleo Salvador.

A cidade de Salvador sempre esteve vinculada aos grandes ciclos de desenvolvimento econômico do Brasil. Como primeira capital do país, Salvador foi o principal pilar da economia agromercantil colonial, alicerçada nas monoculturas do açúcar e do tabaco e no intenso tráfico de escravizados. A cidade prosperou nos dois séculos seguintes como centro comercial, religioso e administrativo até perder sua influência política, quando Portugal transferiu a capital para o Rio de Janeiro, em 1763. Relativamente estagnada por dois séculos, Salvador experimentou processos de modernização mais sólidos a partir da década de 1950, quando recebeu investimentos em infraestrutura, na exploração do petróleo e nos setores industriais da petroquímica, com a formação da sua região metropolitana em 1973.

Em conjunto com o setor industrial, se desenvolveram desde então também os mercados de terra, da construção civil e imobiliário. Isso ocorreu especialmente após a reforma urbana de 1968, implementada pelo então prefeito biônico Antônio Carlos Magalhães, ACM, o avô, que autorizou a alienação das terras municipais desbloqueando a velha estrutura fundiária da cidade, regida ainda pelo regime de enfiteuse. Configurou-se em Salvador o que os economistas Carlos Lessa e Sulamis Dain chamaram de “sagrada aliança”, ou seja, um pacto entre os setores do capital internacional e do capital nacional, mediado pelo Estado, que destinou à fração nacional as atividades de especulação imobiliária e de construção urbana e à fração internacional as atividades industriais. Este pacto permitiu ao mercado imobiliário uma acumulação artificial baseada na obtenção de uma massa de lucros pervertida. A questão urbana esteve, portanto, no centro do desenvolvimento do capitalismo nacional e permanece central no atual regime de acumulação.

A partir dos anos 1990, com a abertura econômica, a globalização, a neoliberalização e a reestruturação produtiva, tem início um processo de desindustrialização, fazendo mudar a rota das estratégias de desenvolvimento econômico que passam a se voltar especialmente para as atividades do setor de serviços. Em Salvador tem início neste período, tanto por intermédio do governo do estado quanto da prefeitura municipal, um amplo processo do que o geógrafo David Harvey chamou de empresariamento da questão urbana. Trata-se da compreensão de que os governos locais precisam ser mais inovadores e empreendedores através da atração de novos investimentos diretos e fontes geradoras de emprego, especialmente por meio do incentivo de parcerias público-privadas, e na produção de renovações urbanas a partir de empreendimentos imobiliários, como um novo centro cívico ou uma nova zona industrial.

Salvador passou a competir com outras cidades na divisão espacial do consumo a partir da ênfase em turismo, inovações culturais, elevação na qualidade do meio urbano, atrativos de consumo como shoppings, marinas, centros de convenções, etc. As estratégias de empresariamento urbano são levadas a cabo por coalizões políticas complexas e heterogêneas, mas que se organizam para colocar em marcha “máquinas de crescimento”, termo do sociólogo Harvey Molotch, que buscam construir ciclos de crescimento baseados em renovação urbana e produção imobiliária.

Em Salvador essas estratégias foram levadas a cabo pelas mais diferentes gestões municipais e envolveram uma integração à dinâmica competitiva do mercado, com o reforço da sua imagem urbana, o estímulo à produção lúdico-cultural, incentivos fiscais e provisão de infraestrutura. As ações se concentraram em torno do turismo e nos atrativos de consumo e entretenimento. As gestões municiais mais recentes de ACM Neto (2013-2020, DEM) e seu sucessor Bruno Reis (2000-atual, União Brasil) levaram tais estratégias a outros níveis, galgando escalas internacionais e se beneficiando da ênfase midiática da “cidade pátria”, uma dimensão simbólica de legitimação dessas estratégias que incentivam o orgulho e o sentimento cívico pela cidade.

Entre as diversas ações da gestão de ACM Neto se destacou a ênfase em grandes projetos de requalificação urbana e na construção de grandes equipamentos. Eles têm uma clara associação com as estratégicas de city marketing, que buscam reposicionar Salvador no quadro competitivo nacional, especialmente no turismo. A maior vitrine da primeira gestão foi o projeto de requalificação da orla marítima da cidade, pois como declarou o prefeito seria um “absurdo” o fato de Salvador ter sido ultrapassada por outras capitais do Nordeste na atração de turistas. Preocupado com essa indústria e com a perspectiva de “vender [a imagem] Salvador no Brasil e no exterior”, afirmou em diferentes oportunidades o objetivo de “atrair turistas e mais negócios para o baiano”. Em associação estreita ao turismo, foi também implementado um processo de valorização de atributos lúdico-culturais que culminou, em 2015, com o reconhecimento de Salvador como cidade da música da rede de cidades criativas da UNESCO. A candidatura foi justificada pela prefeitura pelo objetivo “de potencializar os principais ativos da cidade – a cultura e o turismo”.

Nos últimos dois anos, especialmente após o período mais crítico da pandemia, Salvador sediou importantes eventos internacionais. Somente em 2023, Salvador recebeu o festival  Liberatum, organizado por uma fundação que se apresenta como uma “organização global multimídia e cultural multidisciplinar que capacita mentes inspiradoras para promover mudanças sociais e aumentar a consciência”, e a festa de lançamento do filme (que contou com a presença) da famosa cantora estadunidense Beyoncé. Esse último evento rendeu a Salvador os trend topics na internet.

Também no último ano Salvador realizou um Festival da Virada que atraiu mais de 2,1 milhões de pessoas, segundo dados da Saltur (Empresa Salvador Turismo). Sobre isso o prefeito Bruno Reis afirmou: “tivemos uma movimentação intensa de turistas, o que resultou em grande ocupação hoteleira na cidade e uma movimentação econômica superior a R$ 350 milhões, beneficiando em cadeia diversos setores da cidade. Isso significa geração de emprego e renda para as pessoas”.

No verão de 2024, Salvador foi indicada como o destino turístico preferido dos brasileiros e o terceiro dos turistas estrangeiros. Isso culminou com “o maior carnaval de todos os tempos”, segundo a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, com a cidade batendo recordes de visitantes e foliões nas ruas. A cidade atraiu 1.073.670 turistas, o que significou, segundo a Saltur, uma taxa de ocupação hoteleira de 89% no período, um crescimento de 11% em comparação a 2023. O carnaval, segundo os dados oficiais, movimentou mais de R$ 2 bilhões e contou com 11 milhões de foliões.
 
Como se vê, o turismo e as atividades lúdico-culturais assumem contornos econômicos importantes para a cidade. Porém, as estratégias de empresariamento, que já contam com cerca de três décadas de implantação, não parecem garantir um bom desempenho econômico e muito menos melhores condições de vida para a maior parte da população soteropolitana.

No último trimestre de 2023, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que a taxa de desocupação das pessoas acima de 14 anos em Salvador foi de 14,1%, a maior dentre todas as capitais brasileiras, e a taxa de informalidade foi de 38,7%. O rendimento médio habitualmente recebido em todos os trabalhos pelas pessoas ocupadas acima de 14 anos foi de R$ 2.956,00, pouco mais de dois salários mínimos. Trata-se de uma cidade bastante pobre e precária, com uma taxa de desocupação maior e uma renda média menor que a nacional, respectivamente 7,4% e R$ 3.032,00.

Em artigo de opinião de setembro de 2023, o economista Armando Avena afirma que Salvador vem perdendo dinamismo econômico representado pela perda relativa de relevância do seu PIB frente ao estado da Bahia (26,3% em 2010 e 19,3% atualmente), frente ao Nordeste (em 2013 Salvador era o maior PIB da região e perdeu o posto para Fortaleza em 2020) e ao Brasil (queda do 10° lugar do país em 2013 para 12° em 2020). Salvador apresentou decréscimo absoluto e relativo no PIB industrial, que regrediu no mesmo período de R$ 8 bilhões para R$ 6,5 bilhões, caindo da 15° posição nacional para 39°. Essa realidade econômica pode ser um dos fatores que contribuíram para a redução da população de Salvador em 9,6% (257.651 pessoas) conforme apontado pelo Censo de 2022.

A perda do dinamismo, segundo o referido economista, se explica por vários motivos, a ideia, que considerou equivocada, de que obras de infraestrutura dinamizam a cidade, quando na prática criam empregos temporários; e um erro básico de planejamento estratégico, a especialização econômica da cidade em turismo, entretenimento e tecnologia, ao mesmo tempo em que teria havido um desestímulo aos investimentos em indústria e na construção civil. Para ele, o foco no desenvolvimento do setor de serviços, estimulando a música, a cultura, as festas, o entretenimento, a economia criativa e as startups representa uma visão ingênua de planejamento, pois nenhuma cidade no mundo vive apenas de turismo e serviços.

A falência desse modelo de desenvolvimento se expressa também nos aspectos sociais e raciais. O Mapa da Desigualdade entre as Capitais, recentemente publicado pelo Instituto Cidades Sustentáveis (ICS) e que reuniu 40 indicadores das 26 sedes estaduais brasileiras organizados de acordo com os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, apontou que a capital baiana figura na pior posição em 4 ODS: erradicar a pobreza, erradicar a fome, trabalho digno e crescimento econômico e paz, justiça e instituições eficazes. Salvador apresentou dados (relativos a 2021) extremamente precários em dimensões tais como rendimento per capita, proporção de crianças desnutridas, PIB sobre a população, homicídios de jovens, número de centros culturais, casas e espaços de cultura, distorção idade-série e rendimento médio real da população negra frente aos não-negros e número de domicílios em favelas. No panorama geral, Salvador foi classificada na 17a colocação entre as 26 capitais, sendo Curitiba a primeira e Porto Velho a última.

Uma ampla literatura vem questionando a efetividade das políticas que buscam assentar o desenvolvimento urbano nas chamadas “máquinas de crescimento” e no “empresariamento urbano” e/ou subsumi-lo a determinado “planejamento estratégico” plasmado numa afinidade eletiva entre as lógicas da gestão pública e dos atores privados. Apesar das expectativas criadas por esse discurso de “proatividade”, “empreendedorismo” e “negociação entre atores”, as estratégias de empresariamento urbano não vêm apresentando os resultados esperados e não têm contribuído para a melhoria das condições de vida urbana.

As contradições começaram a ficar visíveis já no primeiro case considerado de sucesso, Barcelona, que se associou ao megaevento da Olimpíada de 1992. Mesmo lá houve baixa participação da população no plano, quase inexistência de moradias de baixa renda frente ao estoque ocioso da vila olímpica, periferização crescente da cidade, fim das parcerias ao fim das Olimpíadas, entre outras questões.

As estratégias de renovação urbana implementadas, como gentrificação, atração de festivais, eventos internacionais, museus e outras, são também limitadas pois são cópias de modelos internacionais já implantados em outras cidades. Se, por exemplo, uma política de water front regeneration (renovação dos portos), conforme aplicada em várias cidades no mundo como São Francisco, Seattle, Sidney, Baltimore, Boston, Londres, Barcelona, Bilbao, Roterdã, Gênova, mas também em Buenos Aires, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Recife pode inicialmente atrair mais turistas, negócios e serviços, tão logo outra cidade o implementa há uma perda das vantagens comparativas e o vigor se mostra passageiro.

Boa parte dos discursos que legitimam a implementação dessas políticas se baseia na necessidade de geração de empregos, realidade particularmente relevante numa cidade como Salvador. Porém, muitos dos empreendimentos levados a cabo, como aqueles da construção civil, produzem uma “falsa” geração de empregos pois parte dos trabalhadores vem de outras regiões e muitas dessas atividades são cíclicas, demandando trabalho por um período de tempo específico, sem contar a qualidade dos empregos gerados, em geral rotativos e de baixo rendimento. A ênfase neste tipo de atividade e nos empreendimentos de renovação baseados numa competição intraurbana acaba gerando um “jogo de soma zero” no qual um emprego criado num determinado espaço deixa de ser criado em outro, embora a força de trabalho seja móvel e possa se deslocar em busca desses empregos.

Com base em estudos do Observatório das Metrópoles, é possível afirmar que a geração de empregos depende mais da política econômica nacional do que de ações pontuais de governos locais. Isso não significa que esses governos não possam implementar políticas econômicas de geração de emprego e renda, mas que as políticas de competitividade baseadas na atração de recursos e capitais externos não logram garantir a produção de empregos em nível sustentado.

Outro aspecto relevante é a tendência das estratégias de empresariamento urbano elevarem o custo geral de vida. Atividades turísticas, festivais artísticos, implantação de hotéis e gentrificação do centro histórico tendem a aumentar os custos com habitação, transporte e alimentação. Está bem consolidado na literatura o reconhecimento de como a panaceia do turismo impacta consideravelmente a capacidade de determinados grupos sociais, pobres e idosos, habitarem os bairros que passam por processos de valorização, mesmo que estas atividades possam contribuir para o desempenho econômico e a ampliação da arrecadação tributária.

É importante destacar que esses programas de empresariamento da gestão urbana muitas vezes se pautam na construção de condições simbólicas de valorização que buscam restaurar o orgulho e o sentimento cívico pela cidade. A grande questão aqui é que governos que se fundam nesse “patriotismo de cidade” tendem a se pautar mais no espetáculo e na imagem dos projetos urbanos do que nos seus conteúdos e nos reais problemas que cada cidade em específico enfrenta, restando a pergunta: Era exatamente disso que a cidade necessitava?
 
Portanto, em qual estratégia econômica a cidade de Salvador deve se pautar? Num dos primeiros livros publicados pelo Núcleo Salvador do Observatório das Metrópoles, Como Anda Salvador, de 2006, o economista Paulo Henrique de Almeida apontou que Salvador apresentava condições e potenciais para o desenvolvimento de uma economia de urbanização: pequenas indústrias comércio varejista, prestação de serviços pessoais, serviços de alimentação, cadeias de supermercados, franquias de varejo, etc. Porém, ele destacou que estrategicamente três tipos de serviços seriam essenciais à economia metropolitana: a) Business services – serviços de consumo intermediário, entre os quais serviços empresariais intensivos em conhecimento; b) Serviços sociais de consumo coletivo – serviços de educação e saúde; e, c) Turismo de lazer e de negócios – turismo cultural e de eventos.

Passadas quase duas décadas desta avaliação, quais os caminhos futuros para o desenvolvimento econômico e social de Salvador? Salvador seguirá insistindo nas atividades artísticas, nas festas, no turismo de sol e mar e na construção civil?

Salvador permanece sendo uma cidade pobre e periférica, marcada pela elevada informalidade das ocupações, alto desemprego e precariedade laboral e urbana. Como lidar com essa situação estrutural? Em parte, talvez seja importante assumir que esta realidade não muda a curto prazo, de modo que as estratégias de modernização da estrutura produtiva devam ser associadas com uma transição para a economia popular de sobrevivência e com políticas públicas de qualificação da força de trabalho e apoio às pequenas e microempresas. Isto é, talvez seja muito mais produtivo focar na dinâmica interna da cidade, com seus potenciais e vicissitudes, do que permanecer investindo em estratégias de competição intraurbana e city marketing. Ou ainda, talvez seja a hora de avançar para uma reflexão mais aprofundada sobre a necessidade de implantar um programa de decrescimento, o que não significa recessão ou diminuição do padrão de vida, mas uma reorganização das prioridades econômicas para que sejam enfatizados menos os aspectos monetários e tributários e mais as dimensões da qualidade de vida, justiça social e sustentabilidade ambiental.

Nem sempre uma cidade que muitos querem visitar é boa para se viver. Por isso, esperamos poder encontrar nas eleições municipais a oportunidade de debater seriamente as estratégias, prioridades e alternativas para o desenvolvimento socioespacial de Salvador.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Gabriela Amorim