Em fevereiro, o vereador de Salvador (BA) pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), Silvio Humberto, assumiu a liderança da bancada de oposição da Câmara Municipal. Ele sucede a mandata coletiva Pretas por Salvador (PSOL), composta por Laina Crisóstomo, Cleide Coutinho e Gleide Davis. Em seu primeiro discurso na posição, o parlamentar destacou as disparidades sociais em Salvador e chamou atenção para a condição dos trabalhadores ambulantes durante o Carnaval. Na oportunidade, também solicitou o encaminhamento do projeto que visa à revisão do Plano Diretor de Planejamento Urbano (PDDU).
Silvio Humberto, de 61 anos, foi eleito pela primeira vez em 2012 e está no seu terceiro mandato como vereador. O político é doutor (UNICAMP-SP), mestre (UFBA) e graduado (UCSAL) em Economia.
Em entrevista ao Brasil de Fato Bahia, o vereador e militante do movimento negro há mais de 30 anos avalia as desigualdades sociais e raciais na capital baiana, defende a revisão do PDDU, faz balanço da gestão do prefeito Bruno Reis (União Brasil) e compartilha as expectativas para a atuação da oposição nas eleições municipais de 2024.
Brasil de Fato Bahia - No dia 5 de fevereiro, o senhor fez seu primeiro discurso enquanto líder da bancada de oposição da Câmara Municipal de Salvador. Na oportunidade, discorreu sobre as disparidades sociais. Como o senhor avalia o atual cenário de desigualdade social em Salvador?
Silvio Humberto - Salvador vive um permanente círculo vicioso da pobreza. É uma cidade que já foi a primeira em termos de Produto Interno Bruto (PIB) do Nordeste, perdeu a liderança para Fortaleza. Mas quando trazemos os indicadores raciais e sociais, Salvador figura como o segundo maior número absoluto de pessoas na pobreza. Quando a prefeitura resolve fazer uma propaganda de que está distribuindo milhares de refeições, isso é um retrato da desigualdade social do país, onde as pessoas não ganham o mínimo para se alimentar. Isso vem pelo fato de a cidade não ter uma dinâmica de geração de emprego e renda decentes para essa população, associando isso a uma concentração de renda e ao racismo que estrutura as relações sociais, de poder e as oportunidades.
O senhor também solicitou, recentemente, o encaminhamento do projeto que visa à revisão do Plano Diretor de Planejamento Urbano (PDDU). Como o PDDU pode impactar nesse cenário de desigualdade?
O Estatuto das Cidades prevê que o PDDU precisa ser revisto a cada dez anos. E a prefeitura optou por não fazê-lo. É o Plano Diretor que pensa a cidade de médio a longo prazo, para onde iremos, quais atividades podem ser implantadas em determinados lugares, para além de pensar a cidade como se fosse somente obras. A cidade ser planejada envolve pensar a mobilidade urbana como um direito. O direito à cidade é que está em jogo.
Nós temos uma expressão aqui [em Salvador], principalmente quem mora nas regiões periféricas, onde as pessoas dizem: “eu vou à cidade”. Isso é um exemplo de que as pessoas não se sentem na cidade. É preciso fazer uma divulgação, uma publicidade maciça para que as pessoas entendam como isso é algo estratégico, que afeta o seu cotidiano. Isso envolve entender a cidade que temos, e de que forma podemos alcançar a cidade que queremos.
Quais outras agendas devem ser prioridades para Salvador neste ano de 2024?
Não podemos nos iludir. Todos os anos são políticos, mas esse ano unimos o tempo político com o eleitoral. É o ano da população passar a limpo a cidade que temos e a cidade que queremos. O meu partido, o PSB, na sua executiva municipal, realizou no ano passado diversas discussões envolvendo vários temas, desde o direito à cidade, passando pela mobilidade urbana, educação, desigualdades raciais, com a pergunta: a cidade que temos e a cidade que queremos. Como você pode tornar Salvador uma cidade digna? Esse precisa ser um princípio basilar.
Porque a cidade é rica, mas se não é digna para a população, ela não rompe com o círculo vicioso da pobreza. Esse é um momento onde nós parlamentares prestamos contas. É um momento importante para a cidade se ver no espelho e entender se as escolhas são políticas. Porque o desenvolvimento é uma escolha política: se você vai ter uma cidade com desenvolvimento mais inclusivo, ou uma cidade que segue os interesses do dinheiro, os caminhos da especulação imobiliária, que não posiciona estrategicamente a cidade para refletir os desejos da população. É preciso pautar as políticas públicas com a população.
Eu acho que deve ser uma preocupação dos governantes se perguntar: isso garante dignidade ou isso é mais do mesmo? Quando você não faz essa pergunta, você não busca as respostas. Você acha que está fazendo obras e obras, que são reativas, porque não são obras que antecipam um problema, sempre reagem. Salvador não pode ter uma educação da forma que temos, onde trazem os equipamentos, mas tem escola com problema de climatização ainda, que é um problema técnico. Há um abandono da educação, sobretudo da pré-escola, ainda faltam creches para essa população, o que afeta diretamente as mulheres e as famílias negras.
É preciso entender, por exemplo, que a educação do município tem que estabelecer uma sintonia fina com a educação do governo do estado. Não pode ser uma espécie de corrida olímpica onde o governo do município disputa com o governo do estado pra ver quem chega primeiro, nessa corrida só tem um perdedor: as crianças e adolescentes negros e negras. Porque essa falta de sincronia afeta diretamente a qualidade de ensino. Precisamos de uma educação pública acolhedora e também geradora de desafios para além da sobrevivência desses estudantes, porque para muitos estar na escola pública é um desafio cotidiano, visto que sua vulnerabilidade social impacta diretamente seu desempenho escolar. A sincronia do município com o estado é fundamental. É preciso um pacto de verdade para além do que está estabelecido no Plano Nacional de Educação.
Considerando a provocação que o senhor traz sobre tomar decisões questionando se trazem dignidade para a população, e a ideia de “prestar contas” nas eleições municipais, qual balanço o senhor faz da gestão do prefeito Bruno Reis?
Eu diria que o prefeito não se faz essa pergunta sobre a dignidade da população. Hoje você tem escolas municipais que estão sendo inauguradas com piscina, mas pergunte se isso estava previsto no que eles chamavam de Escolas Padrão de Qualidade Smed (Secretaria Municipal de Educação). Não estavam! Porque aquilo tinha sérios problemas. Temos escolas que ainda estão sucateadas. Mais de 400 escolas, e apenas 12 ou 13 são em tempo integral. Como é que vamos ter um avanço significativo para se investir nas pessoas? Porque é gente que faz a diferença.
É uma cidade onde as obras são reativas. Temos o exemplo do BRT, que vai tornar a cidade muito mais quente. Não existe um conforto térmico nessa cidade, que a cada ano tem se tornado cronicamente inviável do ponto de vista ambiental. E isso é um problema pra gente, porque quando o prefeito resolve vender áreas verdes e não dá uma outra destinação, tem uma retórica, mas na prática, se rende à visão do capital especulativo imobiliário. Não pode o capital especulativo mobiliário puxar o crescimento dessa cidade, porque nós já vimos qual o resultado. Escolas tradicionais foram derrubadas para atender aos interesses da iniciativa privada. Constroem os espigões, as torres, e a sociedade civil lutando contra isso, porque vai levar ao sombreamento das praias.
A pergunta deveria ser: como enfrentar as desigualdades sociais e raciais e, consequentemente, a pobreza dessa cidade? É uma cidade que tem uma criatividade enorme do ponto de vista da música, se reinventa a cada momento. Isso tem a ver com a economia criativa. Até sem ter uma formação adequada, as pessoas vão se virando. Em Salvador faltam essas alternativas, sobretudo para a juventude. Você não vê uma fala do prefeito em relação à morte da juventude negra. Para essa população, estudar é um ato político, uma forma de garantir uma ascensão coletiva.
Quando fazemos o balanço da prefeitura, vemos a mudança das coisas na cidade, mas tem que perguntar à população: você está sendo tratado com dignidade? É muito dinheiro que gira em torno do carnaval, por exemplo. Mas vão sempre para as mesmas pessoas. Esse ano, os ambulantes ganharam uma plataforma para vender, aparentemente, feito em cima da hora. Se o carnaval acontece todo ano, não se pode esperar soluções imediatas. Poderia ter um grupo de estudos discutindo com os ambulantes. Nós criticamos tanto a fila da indignidade das pessoas se cadastrarem para trabalhar no carnaval. Ano passado eles resolveram fazer um cadastramento online, mas o computador não foi inventado ano passado. A possibilidade de fazer um cadastro online sempre teve, mas na escolha de dar prioridade ou não, começam resolvendo o problema das grandes empresas e marcas que patrocinam o carnaval. E no final, ano pré-eleitoral, apresentam como a quintessência a sua preocupação com os ambulantes. Esse governo não passa no teste quando envolve geração de trabalho e renda, combate à desigualdade e a pobreza da nossa cidade. Não passa na forma de pensar a cidade estrategicamente, considerando tornar Salvador uma cidade competitiva, mas acima de tudo digna e próspera para todos.
Nesse sentido, quais suas expectativas para a atuação e desempenho da oposição na disputa tanto por cadeiras na Câmara Municipal, quanto para o Palácio Tomé de Souza?
Dentro do jogo da democracia, que nós possamos apresentar nossa visão sobre cidade. Eu insisto com a tese da cidade que temos e a cidade que queremos: como é possível ter ações envolvendo a população. Às vezes, eu questiono o discurso de que “aqui fulano que cuida das pessoas”. Mais do que cuidar das pessoas, você precisa ter uma relação de empatia. Reconhecer na população um papel de cidadania ativa, ou seja, pensar as políticas públicas com as pessoas, para ter eficiência. Salvador precisa dessa guinada, porque às vezes parece que nossa cidade sai do ruim para o melhorzinho. Isso é muito pouco diante do potencial criativo e diversidade que ela tem.
Nos cabe, enquanto oposição, falar cada vez mais próximo à linguagem do povo. Porque a comunicação não é só o que você fala, é o que o outro entende. E reconhecer a sabedoria de quem está do outro lado. É preciso sair dessa visão reativa, sobretudo das obras, ou de obras que não dão em lugar nenhum. Ficam aproveitando os financiamentos que estão disponíveis. E você pergunta: são esses financiamentos que melhoram a vida da população? É uma visão de cidade que está em crise e que não garante, por exemplo, a sustentabilidade ambiental da nossa cidade.
Eu sinto que a cidade que temos não é a cidade que merecemos e cabe à oposição, dentro do jogo democrático, demonstrar cabalmente à população que não dá para ficar olhando a cidade como se fosse uma eterna sucessão de eventos. Tudo vira uma grande festa, uma grande peça midiática. Só que eles precisam entender, já ensinava Luiz Carlos da Vila que o show tem que continuar, mas quem assina a direção chama-se povo. É o povo que vai assinar a direção em outubro, e eu espero que assine com a visão de que é possível uma Salvador próspera e digna para todo mundo.
Edição: Gabriela Amorim