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Um povo que serpenteia as ruas: carnaval é lágrima de samba na ponta dos pés*

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Carnaval é lágrima de samba na ponta dos pés - Manu Dias/GOVBA
Parece até que a festa de luta e a luta de festa está sendo esquecida... só parece

Gosto de associar coisas para escrever depois vou dando contornos sem saber no que vai dar, aliás é assim que acontece com a nossa psique... não podemos controlar isso, associamos o tempo todo sem nos darmos conta, apesar de tentarmos trazer alguma linearidade, racionalidade para o texto, para os pensamentos e comportamentos. As memórias nos serpenteiam. Passados alguns dias de folia, algumas imagens: uma analisante que fala do carnaval como uma festa de luta e uma luta de festa, 50 anos do Ilê Aiyê, vitória da Viradouro com o samba enredo “Arroboboi, Dangbé” e seu exército de mulheres saudando a deusa serpente, a deputada Érika Hilton primeira parlamentar transexual a liderar uma bancada no Congresso Nacional, o filme de Bob Marley e as presenças de Cedella Booker e de Rita Marley na trajetória dele, a fala de Lula e a posição do Brasil em relação ao genocídio do povo palestino. E isso não é tudo. Sim, um carnaval de acontecimentos e memórias.

Quando chega fevereiro, o frisson de viver o momento momesco para muitas pessoas está diretamente associado ao entregar-se à folia, às alegrias vividas nas ruas, às danças, aos excessos, ao permitir-se viver o que é reprimido o ano todo, quiçá muitos anos da vida. Parece até que a festa de luta e a luta de festa está sendo esquecida... só parece, com certeza ganha outros sentidos a cada nova geração de foliões. A velha guarda não nos deixa esquecer porque estamos na rua lutando em festa e gargalhando feito Padilhas e Zés Pilintras também. O letramento político e a consciência crítica é um caminho sem volta. Na cidade em que eu vivo ainda tenho o prazer de acompanhar a Mudança do Garcia, me deparar com a Baleia de Itapuã, encontrar pessoas queridas e depois me emocionar com os blocos Afro. O Ilê Aiyê nasceu dentro do terreiro de Mãe Hilda Jitolu, nos anos de chumbo sob muita repressão. E botou o primeiro bloco de pessoas negras na rua desafiando o racismo da sociedade. Esbanjando beleza, na chuva de confetes e com a nossa dança deixa a nossa dor ser transformada na avenida. Se cantava e se canta até hoje músicas de liberdade e redenção. Ah! mãe Hilda, se não fosse o Ilê Aiyê. Ah! Carla Portela, se não fosse você.

As canções de redenção para nos libertar da escravidão mental cantadas por Bob Marley, um profeta do amor e da liberdade, só foram possíveis porque Cedella e Rita foram seus esteios em anos tão sombrios de violência política na Jamaica. A força da mulher é energia que circula também no nosso Congresso Nacional com a primeira mulher negra e trans eleita a ocupar aquelas cadeiras. Érika Hilton é veneno para os conservadores racistas e fascistas, pronta para dar o bote com sua língua afiada aos discursos de necrofilia.  

Outra areia, mesmo mar... genocídio de negros e indígenas em África e nas Américas, genocídio de judeus na Alemanha, genocídio de palestinos em Gaza. Estuprar e matar mulheres e crianças sempre foram mecanismos para enfraquecer e destruir um povo. Violar o corpo de uma mulher é a expressão brutal de invasão das terras de um inimigo constituído consciente e inconscientemente, mas projetado no corpo feminino. Matar é a certeza da extinção de fontes que geram vidas e guardam as sementes do futuro. As vozes conservadoras daqui se levantaram tentando desestabilizar a imagem protagonista do Brasil nas discussões sobre a matança em Gaza. Sofreram um revés que pareceram enfiar o rabo entre as pernas. É inadmissível que se defenda a matança de qualquer ser vivente, ainda mais quando se trata de mulheres e crianças. Que o veneno seja lançado sobre esta maldição.

Há sempre mulheres mudando o curso de nossa história, de nossas vidas, como serpentes sagradas apontando caminhos. E a Viradouro trouxe para a rua uma reza para renascer um levante à liberdade em qualquer lugar do mundo. Para que não esqueçamos que neste chão, descendemos também de mulheres guerreiras do Daomé. E que o sagrado não está apartado da política, das lutas, das alegrias, da geração de vidas e da natureza que nos abraça e alimenta. “Arroboboi meu pai, Arroboboi Dangbê. Destila seu axé na alma e no couro, derrama nesse chão a sua proteção”.

*Referência à música Mulher do fim do mundo interpretada por Elza Soares

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Gabriela Amorim