Em uma iniciativa inédita no Brasil, um grupo composto majoritariamente por representantes das comunidades afetadas pela geração de energia eólica no Nordeste elaborou um documento com mais de cem recomendações a serem adotadas de forma preventiva para mitigar danos e impactos dessa atividade.
O material, intitulado Salvaguardas Socioambientais para Energia Renovável, foi lançado na quarta-feira (31), em evento online. Ele é resultado de um ano de discussões, análises e construção coletiva de medidas socioambientais de mitigação.
Cada medida proposta é fundamentada em problemas apresentados por 29 instituições participantes do processo, entre movimentos e organizações sociais, povos e populações tradicionais, ativistas socioambientais e pesquisadores da área.
As salvaguardas são direcionadas tanto para órgãos e entidades do governo federal, como o Ibama, ICMBio, Aneel e diversos ministérios; governos estaduais e municípios, como também para empresas, agentes financiadores e membros do Judiciário e pesquisadores e pesquisadoras acadêmicos.
“A crescente expansão de renováveis tem intensificado conflitos territoriais, gerado ameaças à biodiversidade, agravado injustiças e danos socioambientais aos povos do campo, da floresta, das águas e aos seus ecossistemas”, diz o documento.
As salvaguardas respondem a três grandes grupos de problemas. O primeiro são os contratos que apresentam grandes desequilíbrios entre empresas e pequenos proprietários ou posseiros, que arrendam suas terras para a instalação das usinas e outras estruturas relacionadas.
Outro é a outorga cedida pela Aneel para geração e transmissão de energia, que não inclui uma análise qualificada de componentes ambientais, sociais, etnoculturais, produtivos ou agrários. Já o licenciamento ambiental dos empreendimentos, majoritariamente estadual, tem se mostrado ineficaz para fazer frente aos problemas enfrentados no chão e também não fornece ações adequadas de reparação.
“Se não houver alteração do modelo, os conflitos e o racismo ambiental se complexificam. Entendemos e acreditamos que existem empresas e financiadores de boa-fé. Para aquelas que não são, o Estado precisa cumprir seu papel, assim como ser corresponsabilizado em não respeitar ou não fazer cumprir o que consta na Constituição Federal e nos acordos que o Brasil é signatário, como a Convenção 169 da OIT, por exemplo”, afirma Andréa Machado Camurça, do Instituto Terramar, no Ceará, uma das entidades participantes.
Entre as salvaguardas propostas, o grupo sugere um conteúdo mínimo contratual para arrendamento; estabelecimento de uma distância mínima de 2 km da torre eólica para edificações (hoje esse limite não existe); priorizar áreas degradadas para instalação de centrais a fim de evitar mais desmatamento; e estudos dirigidos à poluição sonora, incluindo de infrassons, e à luminosa (para evitar o “efeito estroboscópico” provocado pelas luzes intermitentes).
O documento também traz medidas para proteger as atividades tradicionais e a agricultura familiar, que são ameaçadas em certas regiões do Nordeste pela evasão rural ligada à geração de energia eólica. Também são sugeridas medidas para garantir a conservação de áreas protegidas e os direitos de povos e comunidades tradicionais, principalmente o direito à consulta prévia, livre e informada prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
“É preciso entender que os direitos humanos são integrais, não podem ser negociados, violados”, explica a professora Maria Rosa Almeida Alves, do Movimento Salve as Serras, da Bahia. Ela enfrenta atualmente a instalação de um projeto híbrido, eólico e solar, na Serra dos Morgados.
“O projeto Manacá, especificamente, vem sendo conduzido de forma que desrespeita a legislação ambiental: afirmam que não há nascentes no caminho das torres, sendo que há 36 nascentes catalogadas pela Secretaria de Meio Ambiente junto com a Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco) exatamente onde terras foram arrendadas pela empresa”, conta. Essas nascentes abastecem comunidades a até 100 quilômetros do local.
Durante o processo de elaboração do documento, representantes das comunidades participaram de três encontros presenciais, realizados em Salvador (BA) e no Recife (PE), promovidos pelo Plano Nordeste Potência, iniciativa resultante de uma coalizão de ONGs que tem por objetivo fazer com que transição energética, além de levar em consideração o meio ambiente, ocorra de forma socialmente justa e inclusiva.
Edição: Gabriela Amorim