Bahia

Violência no campo

Lideranças apontam impunidade e presença de milícias como causas da violência no sul da Bahia

Além de Nega Pataxó, 30 indígenas já foram mortos na TI Caramuru-Paraguassu desde 2012

Itaparica |
Maria de Fátima Muniz de Andrade, a Nega Pataxó, é a 31a indígena a ser assassinada dentro da TI Caramuru-Paraguassu desde 2012 - Comunicação - Teia dos Povos

A trágica morte de Maria de Fátima Muniz de Andrade, conhecida como Nega Pataxó, majé na comunidade Pataxó Hãhãhãe, se soma a outros 30 assassinatos de indígenas ocorridas dentro da Terra Indígena Caramuru-Paraguassu desde a sua regularização em 2012. Lideranças indígenas e movimentos indigenistas apontam a impunidade como a principal causa para o aumento da violência na região sul da Bahia.

Há quase um consenso entre moradores e organizações populares que atuam na região sobre a existência de um Estado paralelo que atua no território, desobedecendo a justiça e as leis do país. Em nota publicada esta semana, até mesmo o Ministério Público Federal e as Defensorias Públicas da União e do Estado da Bahia apontam o “envolvimento de policiais militares que atuam na área dos episódios de violência”.

“A falta de justiça é o que mais tem acarretado a violência no território. O estado brasileiro não tem usado seu aparato justiça para punir os culpados. Uma das consequências graves [são] esses assassinatos que vêm acontecendo ultimamente”, afirma cacique Agnaldo Pataxó Hãhãhãe, coordenador do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mupoiba).

Para Haroldo Heleno, coordenador da Regional Leste (Bahia, Espírito Santo e Minas Gerais) do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), essa falta de punição aos agentes criminosos na região possibilitaram a criação de um Estado paralelo. “O sentimento de impunidade ao longo desses 30 e poucos anos de luta também incentivou que essa classe dominante da região permanecesse como donos do poder, ou às vezes criando um poder paralelo, se sobrepondo à própria justiça do estado”, acrescenta.


A TI Caramuru-Paraguassu está localizada no sul da Bahia, nos municípios de Pau Brasil, Camacan e Itaju da Colônia / Reprodução/ISA

Histórico de violência contra povos indígenas

A história da terra indígena no sul da Bahia é marcada por diversos tipos de violências contra os povos indígenas. O território foi criado em 1927 ainda com a nomenclatura de Reserva Caramuru-Paraguassu, pela extinta Secretaria de Proteção ao Índio (SPI), com terras doadas pelo estado da Bahia, para abrigar diferentes etnias “capturadas” nas matas da região pelos agentes da SPI. A sua demarcação só foi finalizada dez anos depois, em 1937.

“A reserva nunca foi bem-vista pelos homens e mulheres ‘de bem’ daquela época. E os povos indígenas, mesmo com esse processo, nunca tiveram as suas vidas e os seus direitos garantidos. Tanto é que levou praticamente 10 anos para que houvesse a demarcação física desse espaço, com muitas dificuldades, com muita violência”, conta Haroldo Heleno.

Na década de 1970, durante o governo de Antônio Carlos Magalhães (ACM), esse conflito se acirrou quando o governo da Bahia doou, ilegalmente, a fazendeiros da região títulos de terra que se sobrepunham ao território da então Reserva Caramuru-Paraguassu. Com os títulos em mãos, os fazendeiros passaram a expulsar violentamente os povos indígenas do território. “Se institucionalizou esse processo de violência contra os povos. Como a gente costuma dizer, para os fazendeiros é uma questão de honra, não é nem mais disputa de terra que ali acontecia”, acrescenta.

A partir de 1982, os povos indígenas iniciam um processo de retomada do território. Estima-se que 22 indígenas foram assassinados desde o início da retomada até 2012, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decide pela ilegalidade da permanência de fazendeiros no território.


Haroldo Heleno, coordenador da Regional Leste do CIMI, faz um resgate histórico da violência no território / Jéssica Tupinambá/CIMI

Em setembro de 2008, junto com a Funai, os povos indígenas entram com uma ação civil originária (ACO 312) no STF pedindo a nulidade dos títulos doados na década de 1970. A sentença, favorável aos povos indígenas, é proferida em maio de 2012, mas só em 2016 é publicado o acórdão que determina a desintrusão (retirada) dos fazendeiros do território, que até o momento, não foi finalizada.

“Até o ano passado ainda se tinha levantamento de indenização. Então, esse processo de desintrusão, ele na verdade não aconteceu ainda na sua totalidade”, explica o coordenador regional do CIMI.

De 2012 para cá, mais 31 indígenas foram assassinados na TI Caramuru-Paraguassu, dentre esses, Nega Pataxó e o cacique Lucas Kariri-Sapuyá, assassinado exatamente 30 dias antes de Nega, no dia 21 de dezembro.

Invasão Zero

O assassinato de Nega Pataxó, no último dia 21 de janeiro, aconteceu após a retomada de um território reivindicado desde a década de 1920 pelos Pataxó Hãhãhãe. Há vasta documentação comprovando que a área no Varadouro de Vasconcelos, região contígua a uma das margens da TI Caramuru-Paraguassu, é ocupada tradicionalmente pelos Pataxó Hãhãhãe.

Haroldo lembra que, durante o julgamento da ACO 312 no STF, foi pedido várias vezes a inclusão dessa área no traçado da TI Caramuru-Paraguassu. Diante do atraso de mais de 50 anos em solucionar o problema, os indígenas resolveram realizar o que denominam de autodemarcação, promovendo a ocupação do território pretendido.

O grupo autodenominado Invasão Zero, formado por ruralistas da Bahia e de outros estados do país, convocou a ofensiva contra a ocupação no domingo (21), resultando no assassinato de Nega Pataxó. Seu irmão, cacique Nailton Pataxó segue internado após também ser atingido no mesmo dia. Um dos presos acusados pelo crime é um PM aposentado.

O grupo Invasão Zero tem mais de 13 mil seguidores em suas redes sociais, em que exaltam a violência armada contra a ocupação e reivindicação de direitos de povos tradicionais e famílias sem terra. Em 2023, inclusive, o grupo promoveu um ataque a ônibus do MST que se deslocavam na região de Santa Luzia, também no sul do estado.

“Não houve nenhuma providência pelas autoridades. E esse pessoal, diante do sentimento de impunidade se sentem incentivados também pelos discursos de ódio e pela polarização que estabeleceu no país”, avalia Haroldo Heleno.

Impunidade

Cacique Agnaldo Pataxó Hãhãhãe lembra ainda que a maioria dos 31 assassinatos ocorridos na TI Caramuru-Paraguassu não foram devidamente punidos. “As respostas do Estado estão sendo muito aquém do esperado. O governo federal precisa assumir a responsabilidade junto com o estado da Bahia das questões de segurança pública dos povos indígenas”, reivindica.


Cacique Agnaldo Pataxó Hãhãhãe, coordenador do Mupoiba, reivindica atuação dos governos estadual e federal na segurança dos povos indígenas da Bahia / Arquivo pessoal

Na nota divulgada esta semana, MPF, DPU e DPE-BA afirmam que o Plano de Atuação criado em março se mostrou ineficaz para conter a violência contra os povos e comunidades tradicionais da região. “O programa revelou-se insuficiente para conter a violência, pois além de se limitar a apenas seis municípios do Extremo Sul, não promoveu alterações substanciais na abordagem da segurança pública. O Plano, elaborado sem a participação dos órgãos que atuam na defesa dos direitos dos Povos e ignorando sugestões das lideranças, se revelou ineficaz”, diz a nota.

O Mupoiba vem requerendo que seja criada uma articulação entre governos estadual e federal para conter a violência na região. “Já tínhamos colocado de maneira bem franca que é necessário o estado da Bahia articular uma frente ampla de segurança pública com o governo federal para proteger a vida de nossos povos”, ressalta cacique Agnaldo.

Nesta terça-feira (23), o governador Jerônimo Rodrigues oficializou a criação de uma companhia da PM encarregada de mediar conflitos agrários e urbanos. A nova companhia integrará a estrutura do Comando de Operações Policiais Militares, devendo planejar, coordenar e executar as ações de segurança pública necessárias ao cumprimento de mandados judiciais de manutenção ou reintegração de posse.

No mesmo dia, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que o governo federal vai se reunir para discutir a onda de violência que atinge o povo Pataxó Hã-Hã-Hãe.

“O Mupoiba não vai se calar enquanto os culpados desses assassinatos – de Lucas, de Nega, de mais de 30 vítimas dentro do território de 2012 pra cá ¬– possam ser investigados, identificados e punidos de acordo as leis do nosso país. O Mupoiba tem feito isso e vai continuar fazendo constantemente”, destaca cacique Agnaldo.

Edição: Alfredo Portugal