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Eleições 2024

Eleições 2024: “A violência política de gênero é uma barreira muito grande”

Professora Maíra Kubík Mano reflete sobre participação feminina na política institucional brasileira

Salvador |
Violência política de gênero é um dos entraves à participação feminina na política institucional do país - TSE

Em 2024, teremos eleições para prefeituras e Câmaras Municipais de todo o país. Como em anos anteriores, o Brasil de Fato Bahia trará uma série de entrevistas e reportagens ao longo do ano para nos ajudar a refletir sobre assuntos importantes ligados ao tema das eleições.

E para dar início a essa série, a repórter Vania Dias conversou com a professora adjunta da área de Teorias Feministas, do Departamento de Estudos de Gênero e Feminismo, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (FFCH/UFBA), e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (PPGNEIM/UFBA), Maíra Kubík Mano.

Elas conversaram sobre a participação das mulheres na política institucional, violência política de gênero, os 93 anos de conquista do direito ao voto e a ampliação da presença das mulheres nesse cenário. “A violência política de gênero é uma barreira muito grande”, reflete Maíra Kubík.


Maíra Kubík Mano é professora de Teorias Feministas na FFCH/UFBA e no PPGNEIM/UFBA / Arquivo pessoal

Brasil de Fato Bahia – Até 1930, as mulheres brasileiras não podiam participar do processo eleitoral. Não podiam eleger seus representantes e viviam sob o comando dos eleitos apenas pelo voto masculino e censitário. Historicamente, como se deu a luta feminista pelo direito à participação política? O que essa reivindicação significou no Brasil daquela época?
Maíra Kubik Mano – Desde o final do século XIX houve uma intensificação da reivindicação das mulheres por participar da política institucional, mas esse movimento ganha corpo a partir dos anos 1910, em especial, na década de 1920, liderados por uma pessoa que ficou bastante conhecida nesse primeiro momento do movimento feminista no Brasil que é Bertha Lutz. Ela era uma pesquisadora, foi à França e teve contato com os movimentos sufragistas que estavam acontecendo na Europa, naquele momento. Ao regressar ao Brasil, passa a organizar uma frente feminina para reivindicar o direito a voto e o direito a ser votada também. Então, elas não queriam apenas votar, mas também queriam poder se candidatar, participar ativamente da política institucional brasileira. Elas fizeram mobilizações, há registros de passeatas.

É interessante notar que nesse período também havia outros movimentos sociais no Brasil acontecendo, como, por exemplo, greves que também discutiam e diziam respeito à participação das mulheres na política. Não necessariamente reivindicando, como as sufragistas, o direito ao voto, mas, muitas vezes, com pautas mais radicalizadas pedindo uma transformação estrutural da sociedade brasileira. Nesse momento, também é importante pensar que estamos pouco tempo depois do pós-abolição e também é uma discussão importante sobre a inserção de negros e negras nas instituições da sociedade brasileira. Inserção essa que se dá à revelia de uma contribuição do Estado para realmente promovê-la, como ocorre, aliás, até hoje.

Apesar do voto feminino no Brasil ser reconhecido em 1932 e incorporado à Constituição de 1934, o voto era facultativo. Só em 1965, tornou-se obrigatório, sendo equiparado ao dos homens. O que você pensa sobre a obrigatoriedade e ainda pensando historicamente essa conquista, quais motivos levaram o voto feminino a ser obrigatório tantos anos depois?
A equiparação de direitos políticos de homens e mulheres têm a ver com o processo de lutas das mulheres, das reivindicações dos seus direitos. É na década de 60 que nós identificamos uma nova articulação dos movimentos de mulheres mundo afora, que se intensifica a partir dos anos 70, e que ficou conhecida como a segunda onda do feminismo.

No Brasil, é um período bastante turbulento. Tem o golpe militar de 64, depois tem o AI 5, em 68 que, obviamente, dificultou muito uma participação, uma militância organizada, seja de homens ou de mulheres, mas é importante registrar que durante esse momento histórico houve uma expansão dos direitos das mulheres, não necessariamente dos direitos políticos, mas, mais intensamente, dos direitos sociais. Há uma mudança dos costumes, há uma liberdade maior entre a Juventude, há, de fato, uma transformação lenta, mas que tem um momento importante na década de 60, do papel do lugar da mulher na sociedade.

É um Marco, sem dúvida. E eu acho que a obrigatoriedade ela faz parte do rito da política brasileira. Eu acho que seria interessante que essa e outras questões importantes também fossem debatidas numa reforma política, mas em sendo o voto obrigatório faz sentido que ele seja equiparado, obviamente, entre homens e mulheres.

Em 2023, o Direito de Voto da Mulher no Brasil completou 93 anos. Quase um século depois, o que temos a comemorar?
Sem dúvida é importante comemorar a participação das mulheres na política institucional. No entanto, quase um século depois, verifica-se que essa participação continua bastante baixa. As mulheres não conseguem ultrapassar a barreira dos 20% de eleitas, mesmo havendo, desde 1995, e com ampliação, em 1997, a Lei de Cotas. Mesmo havendo mais recentemente um maior rigor para garantir o cumprimento dessa Lei de Cotas, embora também haja aí, com frequência, a possibilidade da anistia aos partidos que não cumprirem ou que apresentarem candidaturas  laranjas.

Então, infelizmente, transcorrido todo esse tempo, nós vemos que ainda prevalece o machismo na sociedade brasileira que dificulta a participação feminina. Isso tem a ver com a divisão sexual do trabalho que faz com que a política institucional seja espaço hostil para as mulheres. Primeiro, porque elas têm que dar conta de muitas demandas da sua vida privada para conseguir estar na vida pública, diferentemente dos homens. Então, elas têm mais responsabilidade com o lar, com o cuidado com os filhos, com o cuidado com os outros membros da família, especialmente, os idosos. E com frequência essas tarefas,  reprodutivas ou domésticas, ocupam o tempo em que elas poderiam estar na política institucional.

Além disso, para aquelas que conseguem estar nos partidos políticos, militar e serem ativista, elas têm muito pouco incentivo dentro dos partidos a se tornarem lideranças. Então, os partidos não investem nas mulheres como referência. Eu acho que isso pode ser visto com bastante obviedade num momento recente que nós vivemos da reforma ministerial do governo Lula em que os cortes dos Ministérios na negociação para uma ampliação e consolidação de uma base no Congresso foi justamente nos Ministérios que eram dirigidos pelas mulheres. As mulheres foram substituídas por indicações de Arthur Lira, de partidos do centrão, e essas indicações foram todas homens. Isso já mostra, eu acho, um pequeno exemplo bastante evidente de como as mulheres ainda não conseguem ocupar esse espaço por um problema estrutural da sociedade brasileira.

Mesmo com o direito de escolher as suas representações nos espaços de poder, mulheres votam em mulheres?
Sim, as mulheres votam em mulheres. Já há algum tempo, há uma desmistificação da percepção de que não votariam. Tem uma pesquisa importante feita pela Fundação Perseu Abramo, liderada pelo Gustavo Venturi, sobre as mulheres nos espaços públicos, que data ainda dos anos 2000 e que mostra que há uma confiabilidade entre as mulheres para votar em mulheres. Eu acho que a baixa participação das mulheres na política institucional não se deve à questão de votar ou não em mulheres, mas, sim, às condições das candidaturas que são lançadas. As candidaturas das mulheres, geralmente, têm orçamento mais baixo. Elas não são prioridade para os partidos políticos, elas aparecem menos. Então, as mulheres são menos conhecidas na competição eleitoral e também estão em menor número. Elas se candidatam menos que os homens. Então, é mais difícil votar em mulheres. Não à toa, até agora, nós só tivemos uma presidenta eleita da República e que foi deposta por um golpe parlamentar, o Golpe de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff e que foi abertamente um golpe misógino.

Basta olhar as gravações da votação no Congresso, em 2016, para verificar os argumentos utilizados para derrubar essa primeira mulher eleita presidenta do Brasil, em defesa de uma suposta família idealizada a que ela não corresponderia. E mesmo imagens da época que circularam nas capas de revista mostrando ela como uma mulher raivosa, com uma mulher descontrolada ou coisas ainda mais absurdas, como aquele adesivo que circulou com uma reprodução dela com as pernas abertas, que era um adesivo que se encaixava, exatamente, no bocal onde coloca a bomba de combustível no posto de gasolina. Enfim, eu acho que é bastante representativo também o quão difícil é estar na política institucional para as mulheres. A violência política de gênero é uma barreira muito grande.

Embora o direito ao voto e também de se apresentar como alternativa ao eleitorado tenha sido conquistado, torna-se necessário discutir os diversos aspectos da representação feminina ainda pouco expressiva no país. Como reverter a baixa representatividade de mulheres na política, em especial, de mulheres negras, indígenas e trans?
O Brasil para ampliar a participação das mulheres na política institucional, precisa passar por uma reforma eleitoral, uma reforma política que vá para além dos interesses daqueles que hoje estão no Congresso Nacional. Eu entendo que para que a gente consiga chegar a uma participação que seja equivalente à porcentagem das mulheres na população brasileira, isso só seria possível se nós mudássemos o sistema. E aí, eu acho que a experiência mais bem sucedida, talvez, fosse fazer a votação em lista fechada. Ou seja, os partidos políticos apresentam a sua lista de candidatos. As pessoas não votariam mais em indivíduos, mas, sim, nos partidos, o que também reforçaria a necessidade de uma apresentação, de uma existência mais ideológica dos partidos. Os partidos no Brasil, hoje,  são muito permeáveis a mudanças de rumo e de posicionamento, a depender do governo de ocasião. Não à toa que nós temos o Centrão, que está no Congresso Nacional.

E, além disso, essa lista fechada, apresentada pelo partido com as suas prioridades de candidatura, deveria ter alternância de gênero. Então, isso garantiria que 50% das pessoas eleitas seriam mulheres. E aí, obviamente, também é necessário pensar em outras questões relacionadas a diferentes identidades garantindo a presença de mulheres negras, de mulheres indígenas, de mulheres trans. Então, é preciso que, para além de uma reforma no sistema político, é preciso também que haja um estímulo maior a participação dessas mulheres. E isso deve acontecer para dentro dos partidos e também na sociedade, estimulando essas mulheres a se candidatarem, a fazerem parte da política institucional, mostrando que esse é, sim, um lugar a ser ocupado por elas.

Uma questão importante, por exemplo, é a divisão do fundo partidário e das verbas de campanha. Como essa divisão acontece dentro dos partidos? Esse tem quer ser um debate público no Brasil. Existem partidos que priorizam – e a maioria deles é assim – candidaturas de homens brancos, cisgênero, heterossexuais. É preciso que isso seja questionado coletivamente. Interessa à sociedade brasileira, à democracia brasileira uma maior representatividade para que, de fato, pautas de interesse coletivo estejam presentes e avancem na política institucional para que a gente consiga avançar na garantia de direitos.

Essas poucas mulheres que conseguem se eleger ainda enfrentam no ambiente de trabalho a violência política de gênero. Ataques públicos, tentativas de desqualificação de suas ideias e projetos unicamente por serem mulheres. As redes sociais nos dão provas diárias de que essa é uma realidade quase cotidiana vivida pelas mulheres que estão no poder. Quais reflexões e aprendizados podemos tirar desses testemunhos?
A violência política de gênero é um problema muito grave da política institucional brasileira. Nós temos inúmeras denúncias de mulheres que atuam enquanto deputadas, vereadoras e que relatam o quão hostil é esse ambiente à participação das mulheres. Essas mulheres sofrem homofobia, transfobia, machismo, gordofobia. Elas vivem experiências cotidianas muito duras, com colegas que chegam a assediá-las fisicamente, como foi o caso da deputada Isa Penna, em São Paulo, que foi apalpada por um outro deputado estadual, em pleno plenário da Assembleia Legislativa.

Nós temos casos também de outras deputadas que também praticam violência política de gênero contra deputadas. É o caso, por exemplo, da deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) contra a deputada Talíria Petrone (PSOL-RJ), aí também há uma questão imbricada com o racismo. Teve uma publicação envolvendo também Manuela Dávila em que elas são retratadas como diabólicas pela deputada Carla Zambelli, por serem pessoas que apoiam os direitos reprodutivos das mulheres. A ex-deputada federal Manuela D'Ávila (PCdoB), ex-candidata à presidência da República, é uma pessoa que sofreu muito com violência política de gênero. Teve a sua vida exposta, a sua filha ameaçada, saiu do país. São inúmeros casos, infelizmente que dificultam e desestimulam a participação das mulheres na política institucional. E acho que o mais simbólico deles, que é sempre necessário mencionar, é o feminicídio político de Marielle Franco, em 2018. E até agora nós não sabemos quem mandou matar Marielle.

Edição: Gabriela Amorim