No Rastro das Lutas

No Rastro das Lutas: “Se a maioria está alijada do poder, lógico que não existe democracia!"

Nono episódio da série traz a longa trajetória de luta do movimento negro na construção de um Brasil mais justo

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Ativistas apontam o papel do movimento negro na construção da democracia no Brasi
Ativistas apontam o papel do movimento negro na construção da democracia no Brasi - Miguel SCHINCARIOL / AFP

Antes mesmo que existisse democracia no país, o movimento negro já lutava pela criação de uma sociedade mais justa e igualitária. É o que defende Ana Célia da Silva doutora em educação, escritora, poeta e ativista do Movimento Negro Unificado (MNU). “O Movimento Negro é mais antigo. E a democracia ainda está por ser feita, porque só vai haver democracia, quando houver direitos iguais”, acrescenta.

Este nono episódio da série No Rastro das Lutas: Movimentos populares abrindo caminhos para a democracia e direitos no Brasil traz a história da longa trajetória do movimento antirracista no Brasil. Esta produção é uma parceria entre o Brasil de Fato e a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) que completa 50 anos de atuação em 2023.

“O Brasil é um país que nunca viveu plenamente a democracia. E nós, população negra, sempre estivemos à margem do modelo de democracia nesse país. A democracia brasileira é uma democracia incompleta, porque não inclui todos os segmentos da sociedade”, acrescenta Mônica Oliveira, educadora, comunicadora, ativista da Coalizão Negra Por Direitos e da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco.


Ana Célia da Silva doutora em educação, escritora, poeta e ativista do Movimento Negro Unificado (MNU) / Arquivo EBC

Olhar o passado

Ana Célia militou ao lado de ativistas e personalidades como  Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Joel Rufino, Luís Orlando, Carlos Moura, primeiro presidente da Fundação Cultural Palmares, e tantos outros e outras ativistas que constroem a história do movimento negro na Bahia e no Brasil.

“Ingressei no MNU em maio de 1978, levada por Albério Paiva para a reunião do então Grupo Negro, que depois [pasou a ser] Grupo Negro Unificado contra a Discriminação Racial. Naquele mês de maio, Lélia Gonzalez veio fazer uma palestra na Câmara de Vereadores. Nós a conhecemos, ficamos encantados porque ela falou apenas das revoltas negras, das insurgências, do descompromisso da Lei Áurea para conosco. Ela se tornou a nossa grande liderança e veio para o lançamento oficial do MNU Bahia”, conta.

Ela conta ainda que conheceu Abdias Nascimento na década de 1980, assim como Joel Rufino, que costumava vir à Bahia juntamente com Lélia. “E Luiz Orlando foi o companheiro que eu conheci mais de perto. Ele morava no Engenho Velho de Brotas, no apartamento alugado do meu irmão Jonathas Conceição”, lembra. Juntos, eles realizaram um cineclube, percorrendo os bairros em um fusca, com um lençol e um projetor. “Nós chegávamos nos bairros, abríamos o lençol na parede e colocava os filmes sobre negritude. Muitas pessoas gostavam de assistir. Já algumas pessoas mal intencionadas diziam ‘lá vem os comunistas’”, rememora.


Participação de Mônica Oliveira no Encontro CESE e Movimentos Sociais 2023 / Arquivo CESE

Mulheres negras

Desde então até hoje, o movimento negro tem uma marcante participação das mulheres. Mônica e Ana Célia não nos deixam esquecer que as mulheres negras são 28% da população brasileira e que a população negra hoje é em torno de 56% do total da população brasileira. Estes números confirmam a cor do maior grupo populacional do país, no entanto, não se traduzem em presença e representação nas instâncias de poder e de decisão do Brasil.

“O fato das mulheres negras não estarem representadas na maioria dos postos de poder e decisão das instituições nesse país significa uma fragilidade da democracia brasileira”, aponta Mônica. Ela acrescenta que a interseção entre as opressões de raça e gênero faz com que as mulheres negras estejam à margem da sociedade.

“Se a maioria está alijada do poder, lógico que não existe democracia! Não existe!”, enfatiza Ana Célia. Ela acrescenta que a luta do movimento tem sido no sentido da construção de reformas que abram caminhos para a chegada do povo negro a uma instância de poder que dirige os direitos para todas as pessoas, independente das suas diferenças.
 
As mulheres negras têm demonstrado uma grande capacidade organizativa e de articulação em diferentes campos, é o que defende Mônica Oliveira. “As mulheres negras têm sido responsáveis pela sobrevivência, pela manutenção, pelo crescimento da comunidade negra nesse país. Foram as mulheres negras que preservaram a cultura negra no Brasil, são as mulheres negras que preservaram e preservam a religião de matriz africana no país. São as mulheres negras em seus papéis de professoras, lideranças comunitárias, agentes comunitárias de saúde, servidoras, ambulantes, artistas que dirigem as comunidades, que cuidam de suas comunidades, que cuidam de suas famílias. E as mulheres negras nas últimas décadas são também aquelas que mais entram no ensino superior”, diz.  

Seguir para o futuro

Respeitada por sua caminhada como uma das pioneiras do MNU, Ana Célia pensa sobre os desafios que estão postos para os movimentos na atualidade e no futuro. “A organização do movimento negro, na minha opinião, precisa centrar mais na autoestima e identidade do povo negro para que ele não se ache desigual e sim, diferente”, diz.

Ela defende que este trabalho não deve ser minimizado, mas sim priorizado. “Porque eu atribuo, em grande parte, a fragmentação da nossa identidade, à internalização dessa representação negativa em nós, que faz com que nós não tenhamos consciência de que somos maioria, de que somos, como eu digo, a realeza, que trouxe a civilização milenar, trouxe as culturas milenares. Nós não temos essa consciência. É preciso contar, cada vez mais, a nossa história”, acredita.

Também com os pés no presente e no agora, mas sem deixar de refletir sobre os passos futuros do movimento negro no Brasil, Mônica comenta sobre as prioridades e urgências que precisam ser implementadas. “Estamos articuladas também numa grande movimentação de iniciativas do país inteiro de apoio à candidatura de mulheres negras nos processos eleitorais. Nossa agenda de lutas hoje prioriza questões fundamentais, como a questão da segurança pública porque a letalidade policial aumenta, o feminicídio aumenta e são sempre as pessoas negras que são maioria nesses índices. Uma outra discussão importantíssima para nós, neste momento, é a questão das mudanças climáticas. Já  está estabelecido que muito do que foi causado como dano ao planeta não tem retorno e, por não ter retorno, é preciso que as populações se adaptem à nova realidade climática do planeta. Nós temos lutado por uma adaptação antirracista”, aponta.
 
A série de reportagens e podcasts No Rastro das Luta é mais uma iniciativa que se relaciona com as ações dos 50 anos da CESE, trazendo uma abordagem voltada para sensibilização da sociedade acerca da contribuição social, cultural, econômica e política dos movimentos sociais no país. E conta com apoio do programa Doar para Transformar.

Edição: Gabriela Amorim