Bahia

Novembro Negro

Despreconceituosamente, eu vou vivendo a minha vida: Mateus Aleluia recebe comenda Ubiratan Castro

Apub Sindicato entrega comenda Ubiratan Castro ao mestre Mateus Aleluia

Salvador |
Ponciano de Carvalho, diretor Acadêmico, e Marta Lícia, presidente da Apub, entregam comenda Ubiratan Castro a Mateus Aleluia - Alfredo Portugal

No último dia 30, encerrando o Novembro Negro, os alabês soaram no auditório da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e os clarins abriram caminho para a entrada do mestre Mateus Aleluia. Certamente, desde 1891, a faculdade já foi palco de inúmeras homenagens a ilustres personagens baianos, mas talvez, nenhuma como essa a Seu Mateus.

A cerimônia, ao mesmo tempo, lançou e fez a entrega da Comenda Ubiratan Castro, concedida pela Apub – Sindicato dos Professores das Instituições Federais de Ensino Superior da Bahia. Ubiratan Castro, egresso daquela faculdade, foi professor da Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas da UFBA e um dos fundadores do Centro de Estudos Afro Orientais (CEAO). Faleceu em 2013, aos 64 anos.

Tendo como homenageados do dia o professor doutor Ubiratan e o mestre Mateus, a cerimônia não podia seguir os ritos comuns àquele espaço de tradições europeizadas. Logo após a instalação da mesa, Ponciano de Carvalho, professor do departamento e diretor Acadêmico da Apub, convidou a ialorixá Gilmara Santos para abrir a cerimônia. Pedindo agô a Orixá e a bênção dos mais velhos, mãe Gilmara pediu para os alabês tocarem para Oxóssi, dono das quintas-feiras, como aquele dia 30.

Só assim, então, se iniciaram os discursos e saudações de praxe. Mais adiante, o auditório lotado ainda ouviu a voz forte de Matilda Chaves cantar duas músicas dos Tincoãs, uma para Nanã, dona do Orì de mestre Mateus Aleluia, e outra para Obaluaê, senhor do Orì de Ubiratan Castro.


Barbara e Maria da Glória, filha e viúva de Ubiratan Castro, recebem homenagem da Apub / Alfredo Portugal

Novembro Negro

Em seu discurso, Ponciano de Carvalho ressaltou que a instituição da comenda e a entrega desta ao mestre Mateus Aleluia, na Faculdade de Direito, não se prestam ao apagamento ou esquecimento do racismo presente marcadamente na sociedade brasileira. “O racismo é desnutrição de ânimo, de viver. O racismo é punção de morte. Mas ele não pode nos matar enquanto lutamos, vivemos e amamos”, pontuou.

De acordo com o diretor Acadêmico da Apub, menos de 10% dos professores daquela faculdade são negros. Ele ainda destacou que as cotas raciais para ingresso nas universidades têm sido importante instrumento para “pintar um pouco mais de preto” os corredores das instituições públicas, mas isso ainda não se reflete no corpo docente. No país, neste momento, dentre as 302 instituições públicas de ensino superior há apenas oito reitores negros.

“Entendemos que o simbólico do mestre Bira e de seu Mateus é um lugar possível de buscar a mudança para a sociedade democrática e antirracista. Um lugar de denúncia grave, dura, mas doce. Vigorosa, mas poética. Um verdadeiro paradoxo da crítica que impulsiona a vida e a sedução para a luta”, afirmou.

Em seu discurso, entre risos e lágrimas, Marta Lícia, presidente da Apub, amiga e ex-aluna de Bira, lembrou que dar à comenda o nome de Ubiratan Castro era homenagem óbvia. “A gente precisava dizer para todos aqui presentes, neste Novembro Negro, o quanto para nós, esse professor é inspirador. Nos inspira, com sua luta antirracista, com a defesa nas ações afirmativas, com a história contada da Bahia e do Brasil, a partir de uma perspectiva dos negros e negras, dos trabalhadores, dos sertanejos, assim como ele sempre relembrava e reavivava”, disse.


Da esquerda para a direita: Ponciano de Carvalho, diretor Acadêmico da Apub; Penildon Silva, vice-reitor da UFBA; Mateus Aleluia; e Wlamyra Albuquerque, superintendente de Assuntos Internacionais da UFBA / Alfredo Portugal

Mestre Mateus Aleluia

Outra homenagem óbvia, destacou Marta, era fazer a entrega da primeira comenda ao mestre Mateus Aleluia. Como bem descreveu o professor Ponciano: “Seu Mateus canta a doçura de uma ancestralidade viva em todos nós. Tudo em seu Mateus é força, fé, trabalho e amor, muito amor”.

Nascido em Cachoeira, em 1943, Mateus tornou-se um ícone não apenas da música, mas de toda a cultura negra baiana e brasileira. Na década de 1960, ele chega aos Tincoãs, grupo que reunia outros cachoeirenses ilustres, como Dadinho, com um repertório inspirado nos cânticos sagrados do candomblé e sambas de roda. Em seu discurso, mestre Mateus fez questão de afirmar que aquela homenagem se estendia aos demais Tincoãs, especialmente Dadinho.

Seu Mateus compartilhou a homenagem também com todo o povo negro brasileiro. “Represento aqui a massa humana que atravessou esse Atlântico, há séculos atrás”, disse. E ressaltou que esse povo, hoje efetivamente brasileiro, agora, enfim, pode falar e ser ouvido. “A terra que nos fez calar, hoje nos ouve também”, acrescentou.

Na década de 1980, Mateus e Dadinho se mudaram para Angola, onde gravam o último álbum do grupo. Duas décadas depois, de volta ao Brasil, seu Mateus contou que buscou diversos intelectuais, agentes culturais e políticos da Bahia, para ser re-batizado em sua terra natal. Uma dessas pessoas, foi o professor Ubiratan Castro, que o recebeu no CEAO.

Ele ressaltou o papel do professor Bira nesse processo de retorno de seu Mateus ao Brasil e à Bahia – e de seu rebatismo. Para o mestre, o professor Ubiratan foi um de seus parceiros na busca de estratégias para encontrar caminhos de vencer o silêncio e o silenciamento racista. E conclamou a todos os presentes, não apenas o povo negro, a encontrar, agora, estratégias de seguir lutando, para não incorrer no erro de lutar contra irmãos e irmãs. “Se não, vou viver mais 80 anos e ainda vamos estar vivendo o mesmo momento”, disse.

Seu Mateus lembrou de companheiros negros, presentes na política institucional, como Silvio Humberto e Olivia Santana que, embora eleitos, não tiveram uma votação expressiva. “E por que essa não aderência de uma forma consciente a um nome como Silvio Humberto? Aquela votação corresponde com nosso afã? Eu fiquei triste”, questionou. E defendeu que essa não é uma conversa sobre política, mas sobre a realidade, que atinge também a cultura e a música.

E finalizou, afirmando que apesar de toda a luta ainda por construir, nós somos povo de fé, emancipados antes que a emancipação se concretize. “Nós somos felizes. A gente sabe chorar rindo e rir chorando. Nós sabemos desinflamar as nossas almas quando ela está muito angustiada”.

Ubiratan Castro

Mateus Aleluia, em seu discurso, se referiu carinhosamente ao professor Ubiratan como “comunista irreverente”. Assim ele era. Todos os que falaram sobre Bira nessa manhã, se lembraram de suas piadas e seu riso. E também de sua erudição e generosidade com os e as estudantes.

A presidente da Apub, Marta Lícia, relembrou que ele foi um membro ilustre do sindicato, filiado em 1978, mesmo ano em que chega à UFBA como professor. “Já [trazia] o currículo demarcadamente político, oriundo do movimento estudantil no Colégio Central, da Universidade Católica de Salvador, onde estudou História. E com atuação integrada com o movimento estudantil da UFBA, onde veio a cursar Direito nesta escola”, lembrou.

A professora Wlamyra Albuquerque, superintendente de Assuntos Internacionais da UFBA e pesquisadora permanente do CEAO, lembrou ainda que ele foi um dos idealizadores da pós-graduação em História da UFBA.

“Eu, como todos os outros estudantes negros e negras, de periferia, da minha geração estudamos na [Universidade] Católica. E o mestrado era porta de entrada para a tão desejada Universidade Federal da Bahia”, contou. Anos depois, ela viria a ser diretora da Fundação Pedro Calmon, quando Ubiratan Castro esteve à frente da Secretaria de Estado da Cultura.

Nesta época, Bira convidou Mateus Aleluia para uma apresentação no Palácio do Rio Branco. A professora doutora Wlamyra Albuquerque lembra de ter ouvido Ubiratan afirmar naquele dia: “Nunca mais vai ser possível que se ignore um personagem como Mateus Aleluia”.

E neste dia, seu Mateus e mestre Bira se encontraram novamente. E a voz grave de Mateus cantou a música de Milton Nascimento, que clama “África, em nome de Deus, Cala a boca desse mundo, E caminha, até nunca mais”.

Edição: Alfredo Portugal