Um relatório técnico do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) apontou a existência de cláusulas abusivas em contratos de arrendamento de terras pelas usinas produtoras de energia eólica no Nordeste. Dentre os problemas apontados pelo estudo estão, por exemplo, a previsão de multas de até R$ 5 milhões para pequenos agricultores que decidirem desistir de arrendar suas terras para tais empresas. Por outro lado, nenhum dos contratos analisados previa que as empresas fizessem qualquer tipo de compensação às comunidades e pequenos proprietários de terra caso o empreendimento seja desfeito.
O Brasil de Fato Bahia conversou sobre essas e outras questões com um dos responsáveis pelo relatório técnico, o advogado e pesquisador Rárisson Sampaio, que também é mestrando em Direito Econômico pela Universidade Federal da Paraíba (PPGCJ/UFPB) e membro da Latin American Climate Lawyers Initiative for Mobilizing Action (LACLIMA).
Brasil de Fato Bahia - Professor, o senhor analisou 50 contratos de empresas produtoras de energia eólica para arrendamento de terras. Quais foram as cláusulas abusivas mais comuns encontradas nesse seu levantamento?
Rárisson Sampaio - Primeiro nós temos que olhar para como essa relação é construída. O principal ponto sobre o estudo que o Inesc realizou é apontar que há um desequilíbrio muito profundo nessa relação contratual. De um lado nós temos as empresas, com todo o seu aparato jurídico e econômico, e de outro lado, nós temos famílias, muitas vezes vulneráveis socialmente, economicamente e preponderantemente com um baixo nível de instrução.
Além disso, os contratos levantados e analisados têm um formato padrão, o que vai se assemelhar em muito com aqueles contratos de adesão que a gente conhece dos direitos do consumidor, quando você vai contratar um plano de operadora ou internet, aderir a algum serviço. E nesses empreendimentos, nós verificamos a mesma coisa, os 50 contratos [analisados] podem ser traduzidos em apenas sete deles, que vão conter todas as cláusulas que nós analisamos.
O ponto mais gritante desses contratos é a renda da terra, o percentual econômico que é revertido para essas famílias. Os contratos, em sua média, atribuem um valor de R$1 por hectare. Tratando-se de pequenos proprietários, o valor a ser pago pelo uso dessa propriedade seria ínfimo, irrisório. Além disso, o percentual de lucro pela geração de energia durante o período já de operação, superando a fase de construção, os percentuais econômicos revertidos para os arrendantes, que são os pequenos proprietários, seriam em média de 1% a 1,5%, em alguns casos, até bem abaixo disso, 0,85%. Algo extremamente desvantajoso, porque não é uma porcentagem sobre o lucro geral do empreendedor, mas sobre a produção daquele aerogerador que está instalado naquela propriedade.
E por que isso é abusivo? Porque na própria abordagem, as empresas, em muitos casos, os seus atravessadores, aquelas pessoas que captam as terras, prometem uma renda fixa por mês, prometem até mesmo, como eles chamam, uma aposentadoria vitalícia para aquelas pessoas. Isso é de uma violência enorme, porque não são pessoas que têm a devida instrução para entender que esse discurso além de falacioso, beira a ser ilegal. É um abuso imenso!
Além disso, nós podemos falar das renovações automáticas dos contratos. São contratos com longo período de vigência, que vão seguir o período de outorga: 35 anos, alguns contratos colocam muito mais, 40, 49 [anos]. E condicionam a renovação automática unicamente ao interesse da empresa de forma unilateral. Isso já é também de uma violência sobre o uso da terra, porque a empresa não é a proprietária na condição de arrendatária, ela apenas vai fazer o uso e o gozo dos recursos que ela está utilizando, mas a propriedade continuaria a ser do pequeno proprietário, que poderia ter a legitimidade, deveria ser consultado e se manifestar sobre o interesse ou não de renovar aquele contrato.
Outros itens que nós vamos apontar é quanto a atribuição de ônus, encargos, obrigações para os arrendantes, e a isenção desses ônus e encargos para as empresas. Por exemplo, uma indenização caso não tenham interesse em continuar o empreendimento. Se o agricultor diz “olha, eu quero encerrar o contrato”, então ele vai arcar com perdas e danos. Já para a empresa, não. Se amanhã a empresa quiser encerrar o contrato, só encerra e pronto, desfaz o contrato, retira os equipamentos e não terá nenhum tipo de reparação às famílias. Então, isso já demonstra também um desbalanceamento muito grande.
Outra condição que nós podemos colocar é a vinculação de herdeiros, que é um ponto controverso do direito, porque além do longo período de vigência, acaba atribuindo ônus e encargos também àquelas pessoas que não tinham nada a ver com esse empreendimento. Aí vem um outro ponto sensível: muitas vezes essa propriedade é o único bem familiar. Esses contratos estão delimitando e regulando aquilo que seria legado às gerações futuras. Então, é um ponto que merece a nossa atenção.
E, por fim, as cláusulas de sigilo e as multas por quebra contratual. Um contrato especificamente colocava a cláusula expressa de R$ 5 milhões como uma multa por descumprimento do contrato. Isso é um valor muito grande e extremamente desequilibrado, abusivo. Outros contratos vão de forma mais sutil, mas incluem uma multa que é exorbitante quando você condiciona uma reparação a um percentual do valor do empreendimento. E essa atribuição não é algo apresentado de maneira esclarecida.
A gente sabe que esses contratos, na maioria das vezes, são assinados com pequenos agricultores familiares, pessoas que normalmente não podem contratar um advogado para analisar os contratos, né?! Esses textos são escritos em uma linguagem clara, que consiga comunicar adequadamente essas pessoas?
Quando a gente fala sobre o momento de assinatura do contrato e o esclarecimento dessas famílias, há dois pontos que nós precisamos tratar aqui. O primeiro é a forma de abordagem que, em muitos casos, é completamente diferente do conteúdo que está contido no contrato. E esse é um problema que organizações, grupos, até mesmo o poder público, em alguma instância, agora com a instituição da Mesa de Diálogos, vai ter que encarar. Como nós alcançamos essa fase de abordagem, essa fase de captação das terras, que é muito prévia a qualquer ato administrativo, a qualquer ato formal a respeito daquele empreendimento, que seria um licenciamento, outorga ou coisas desse tipo? E, em muitos casos, é feita por empresas que não vão instalar um empreendimento de fato. São empresas que captam as terras e subarrendam para outros empreendimentos.
E o segundo ponto, que nós precisamos olhar com muita atenção, é o próprio instrumento contratual e como ele é apresentado a essas comunidades. Porque não há, ou pelo menos não é a práxis desse mercado, fazer um esclarecimento coletivo do que é esse contrato, do que está contido nele, quais são as suas consequências, para além do conteúdo contratual. Um ponto sensível para muitos agricultores que, são segurados especiais, eventualmente, quando eles assinam esse contrato, eles vão perder essa condição de segurado especial. E isso não é esclarecido em nenhum momento, e estamos na iminência de criar um grande problema previdenciário no país, ou pelo menos na região Nordeste, quando essas pessoas se verem desprovidas do seu benefício ou da sua condição de segurado que vai impedi-la de conseguir se aposentar.
Os contratos, eles não são apresentados no próprio texto de uma linguagem acessível. Eles adotam aquele mesmo padrão empresarial, jurídico. E há uma lacuna de assistência jurídica muito grande para essas comunidades. Existe um esforço dos sindicatos e de organizações, de tentar alcançar essas famílias para prestar algum esclarecimento, para adverti-las dos possíveis impactos de assinatura desse contrato desconhecendo o seu conteúdo. Mas é um trabalho muito difícil, porque precisa de uma capilaridade muito grande.
Nesse processo de contratação, há uma verdadeira isonomia entre as partes, ou seja, os donos das terras e as empresas?
E diante disso que a gente está conversando até aqui, fica claro que não. Essa não é uma relação igualitária, onde as partes conseguem expressar livremente, de forma legítima, o seu interesse. Existe um ponto, dentro do Direito Civil sobre a lesão contratual, que é quando se verifica que aquela parte que fez esse contrato, ou não entendia muito bem as condições e consequências dessa relação, não tinha esclarecimento efetivo do que estava pactuando; ou, quando por alguma situação, a parte é compelida a assinar aquele contrato. Nessas relações com empresas de energia renovável, sobretudo energia eólica, aqui no Nordeste brasileiro, nós observamos as duas coisas: populações que não são devidamente esclarecidas a respeito do conteúdo contratual e suas consequências; e também evidenciamos uma condição de vulnerabilidade socioeconômica, que muitas vezes é o que leva essas pessoas a assinarem qualquer documento que lhe prometa que vai garantir alguma renda.
Enfim, essa não é uma relação equilibrada. As empresas têm um poderio econômico muito forte, um aparato jurídico muito refinado e o esclarecimento técnico que não chega às famílias. Uma das soluções que são propostas, tanto por grupos quanto pelo entendimento do Inesc, do plano Nordeste Potência, que é necessário ter uma negociação coletiva. É necessário que os grupos se articulem coletivamente, o que tem sido difícil diante das cláusulas que impõem sigilo às famílias. Diante dessa condição, se veem no receio de divulgar o contrato entre os seus pares e buscar uma assistência jurídica especializada ou até mesmo o apoio sindical para que preste essa assistência jurídica com o receio de que, ao divulgar esse contrato, ela perca a promessa de renda que recebeu. Então, esse sigilo promove desarticulação.
Como tem sido o suporte, o aparato estatal oferecido a essas comunidades? Há um acompanhamento dos órgãos reguladores e outros entes federados no auxílio a essas populações?
Como os contratos até então eram tratados de forma essencialmente privada, como se de fato aquele pequeno agricultor estivesse em pé de igualdade com a empresa para expressar, para bater na mesa e dizer: “olha, esses são os meus interesses”, nós não tínhamos nenhum acompanhamento do poder público, não é? É algo que nós estamos tentando mudar. A iniciativa da Secretaria Geral da Presidência da República já demonstra uma inclinação nesse sentido. Mas nós temos outros grupos, outras organizações, órgãos do poder público que tentam fazer esse acompanhamento de forma mais aproximada. E aqui nós podemos destacar o estado da Paraíba, que através de uma articulação entre Defensoria Pública da União (DPU), Ministério Público Federal (MPF) e algumas outras entidades sentaram para ouvir as comunidades, tentar compreender esse problema, para aí sim elaborar algumas recomendações direcionadas a órgãos que possam ter uma atuação mais incisiva, como o Incra e até mesmo a própria Aneel.
Atualmente, eu diria que, na instância federal, a grande articulação que nós temos é através da Mesa de Diálogos, que se iniciou agora através dos estados de Pernambuco e da Paraíba para visitar essas comunidades e compreender o problema in loco. Mas ainda não temos uma real dimensão de quais serão as respostas a partir dessa iniciativa. Mas é uma iniciativa pioneira dentro do governo federal, que pode vir a trazer bons frutos.
No relatório técnico que resultou dessa pesquisa, há um capítulo de recomendações para salvaguardas contratuais para essas comunidades. Poderia nos falar um pouco sobre essas recomendações?
O relatório do Inesc tem um papel político muito interessante, muito forte, porque além de complementar esse levantamento, destrinchar essas cláusulas contratuais, há uma propositura de salvaguardas, que podem vir a ser adotadas ou até mesmo servir de pontapé para pensarmos outras medidas.
Alguns pontos que nós levantamos é a provocação dos entes públicos, para que eles acompanhem esse problema. Porque é um problema que já existe há anos no território, mas que precisa alcançar ainda essa esfera de discussão e entrar na pauta política mesmo como algo a ser solucionado. Outro caminho seria provocar esses atores pra gente tentar pensar um modelo contratual ou regulamentaçõe para a relação contratual. Porque, veja bem, estamos a falar de grupos hipossuficientes, o que a gente considera no direito, como socioeconomicamente vulneráveis, grupos mais vulneráveis em esclarecimento, em poder econômico e em vários outros fatores sociais. O direito costuma proteger certos grupos que ele vai considerar como hipossuficiente. Nós vemos isso muito de forma muito comum no direito do consumidor. Ele é tido como hipossuficiente numa relação econômica. E aí, através de Código do Consumidor, nós temos aí uma série de salvaguardas.
Temos também no próprio Direito Agrário, né? [No entanto] o Direito Agrário tem sido deturpado pelas empresas para atuar nesses territórios como se fossem negócios agrários, que na verdade, não são. Invertem esse polo de proteção, que antes era o pequeno agricultor, e agora eles se lançam na condição de arrendantes e as empresas ficam na condição de arrendatário e ali transformando os institutos jurídicos a seu favor.
Outra iniciativa que nós temos através do Plano Nordeste Potência, que é um produto direto desse estudo, a construção de salvaguardas. Nós tivemos reunidos ali com o máximo possível de organizações sociais, de representantes das comunidades, para que eles sejam atores que, além de subsidiar o conteúdo prático, aqueles que vivenciam problemas em seus territórios para que nós possamos pensar essas soluções juntamente com eles, né? De forma adequar ou tentar contemplar ali uma gama de situações que vão ocorrendo.
Esse é um segundo produto que temos a previsão de lançar pela Articulação Nordeste Potência, com essa propositura de salvaguardas, que seriam construídas para tentar resguardar ao máximo os direitos e interesses também desses grupos que estão nos territórios, os grupos das comunidades das famílias diante desses empreendimentos e energias renováveis.
Edição: Alfredo Portugal