Um relatório técnico produzido pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) sobre os contratos de arrendamento e uso da terra para instalação de aerogeradores para produção de energia eólica no Nordeste mostra uma relação extremamente desbalanceada entre as empresas de energia renovável e os proprietários das áreas – em sua grande maioria, pequenos agricultores.
O advogado e pesquisador da Universidade Federal da Paraíba, Rárisson Sampaio, analisou 50 contratos do tipo onde encontrou remunerações irrisórias pelo uso da terra e cláusulas abusivas que acabam sendo aceitas por famílias de baixa renda por falta de conhecimento, de assistência jurídica e por conta da necessidade de ampliar a renda familiar.
"Nós temos uma atividade que está sendo exercida ali dentro daquela propriedade onde 99% ou 98,5% da renda fica pra empresa e 1% ou 1,5% para o dono da área. Isso já demonstra um desequilíbrio imenso. Esta é uma atividade lucrativa, uma atividade que movimenta muito o capital, então, pela própria natureza de um negócio, de um contrato com relação de interesses entre a empresa e as comunidades, seria natural que tivéssemos percentuais um pouco mais elevados para tornar esse negócio benéfico tanto para a empresa quanto para a comunidade", explica Rárisson, que também leciona na Universidade Regional do Cariri.
Ele destaca também que a opção pelo contrato de arrendamento ou de cessão de uso – com mais flexibilidade do que se fosse feita a compra das áreas – é de ordem econômica, pois reduz custos para a empresa.
Poder público ausente
Os contratos são negociados livremente pelas empresas e não há qualquer tipo de mediação ou validação do poder público, seja no licenciamento ambiental, seja na emissão de outorga para geração de energia. "A falta de fiscalização e acompanhamento das negociações e dos contratos pela agência reguladora [ANEEL] e por instituições como o Ministério Público e as Defensorias é uma lacuna que reduz a proteção das comunidades mais vulneráveis na exploração da energia", conclui o estudo.
Com isso, as empresas de energia eólica, munidas de equipes de advogados e sob a promessa de geração de renda, conseguem impor contratos que permitem a elas encerrar o vínculo a qualquer momento ao tempo que comprometem até mesmo os herdeiros a manter as obrigações contratuais. Muitas vezes, o proprietário é obrigado a pagar por assessoria jurídica. No entanto, o serviço é ligado à própria empresa, tornando sua isenção altamente questionável.
A duração dos acordos é longa para garantir a posse da terra durante todo o tempo de concessão de outorga para produção de energia concedida pela ANEEL, que é de 35 anos. Muitas vezes eles também contêm cláusulas de renovação automática, condenando gerações da família a cumprir o acordo e com remuneração financeira quase sempre muito inferior ao prometido nas abordagens de convencimento para assinatura.
Os contratos geralmente preveem uma remuneração fixa durante o período de estudos do potencial eólico e uma porcentagem do lucro gerado pelo aerogerador quando a usina entra em funcionamento. Rárisson relata que os pagamentos iniciais podem ser tão baixos quanto R$1 ou R$2 por hectare, gerando valores mensais ínfimos como de R$46,50 ou R$63 – exemplos do contrato da empresa Casa dos Ventos nos municípios de Araripina (PE) e João Câmara (RN), respectivamente.
Para Rárisson, esse desequilíbrio de poder configura estes arrendamentos de terra como semelhantes aos contratos de adesão, aqueles que já vêm prontos, sem possibilidade de se negociar melhores condições, como acontece na assinatura de um plano de telefone ou de TV a cabo. Isso fica claro, segundo ele, quando se percebe que muitos deles têm conteúdo idêntico mesmo sendo relativos a diferentes empreendimentos.
Concentração de renda e terra
Quando a usina entra em funcionamento, as famílias passam a receber porcentagens fixadas em contrato da renda gerada em sua propriedade. Nos contratos analisados pelo Inesc, essa porcentagem varia entre 0,85% e 1,5%. Relatos veiculados na imprensa mostram que esse valor costuma resultar em renda entre R$1.000 e R$1.300 para cada aerogerador por mês.
Logo, se proprietários de grandes porções de terra conseguem uma renda mensal considerável ao permitirem a construção de dezenas de aerogeradores em suas propriedades, para um agricultor que só pode abrigar uma torre, ao custo do impedimento de exercer outras atividades, o contrato chega a ser uma expropriação de sua terra.
E junto com esta renda insuficiente vêm os impactos. Relatos de casos severos de insônia e depressão têm sido registrados por conta do barulho constante das hélices. Agricultores também relatam que as criações deixam de produzir filhotes ou ovos. Boa parte da propriedade fica com uso impedido devido ao isolamento que o equipamento de geração e transmissão de energia requer.
"Estes arrendamentos vão caracterizar o que pesquisadores chamam de despossessão, porque as empresas, na prática, acabam assumindo o controle daquele terreno, daquela propriedade. São elas quem vão dizer como se dará o uso, como se dará o acesso, e quais as limitações que serão impostas àquela propriedade", explica Rárisson.
Com isso, o pesquisador aponta que na prática acontece uma concentração fundiária semelhante à promovida por outras atividades econômicas que operam a partir da aquisição de terras. "Pela quantidade de arrendamentos que nós verificamos no nordeste brasileiro, o que nós temos é um controle massivo das propriedades que é atribuído às empresas por meio desses contratos", conclui.