Plantações perdidas, casas inundadas, bens levados por enchentes, rio seco sem possibilidade de pesca. Esses são alguns impactos causados pela Usina Hidrelétrica de Itapebi, no Rio Jequitinhonha, na divisa com Minas Gerais. Os relatos sobre as consequências das constantes enchentes foram trazidos pelo Cacique Rony Tupinambá, liderança na Aldeia Encanto da Patioba, localizada no município de Itapebi, próximo à barragem.
A usina foi instalada há 20 anos para atender às demandas por energia elétrica de empresas Polo Petroquímico de Camaçari (BA). Mas há pelo menos três anos tem causado transtornos aos moradores de comunidades indígenas e ribeirinhas da região.
“Já teve época de a gente acordar de noite para socorrer os parentes que moram na beira do rio. Sem contar que as nossas plantações ficam 800 metros afastado do rio Jequitinhonha, e essas últimas enchentes, quando a usina soltou a água, mataram a nossa agricultura familiar, nossas roças, nosso plantio”, desabafa cacique Rony.
Ele conta que o impacto foi tão grande, que a aldeia precisou pedir apoio do Estado com cestas básicas, porque estavam passando necessidade, sem acesso ao seu principal meio de subsistência, que é o plantio. Segundo ele, nos últimos três anos, sempre no período de dezembro para janeiro, a comunidade precisa ficar em alerta para as enchentes.
“A usina segura o máximo de água para gerar sua energia, ganhar mais recursos. Quando ela não suporta mais, acaba soltando. E não tem aviso nem pra comunidade indígena nem na cidade baixa de Itapebi, que também é alagada e afetada pelo rio de Jequitinhonha.”, explica. O líder indígena lembra que, na última enchente, cerca de 80 famílias foram afetadas, tiveram suas casas alagadas e perderam seus eletrodomésticos.
De acordo com Moisés Borges, integrante da coordenação nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), os municípios mais impactados pela obra hoje são Itapebi e Belmonte, do lado baiano, e Salto da Divisa e Jacinto, do lado mineiro.
As comunidades que estão acima da barragem e que foram alagadas até hoje reivindicam processos de reparação justa, que não foram feitos durante a construção da obra, como reassentamento, indenizações e melhorias de condição de vida. “Ao mesmo tempo que a usina gera grande lucro, esse desenvolvimento não chega nas comunidades atingidas, que continuam vivendo numa situação de miséria”, acrescenta Moisés Borges.
Já para as comunidades abaixo da barragem, a principal reivindicação é uma reserva de vazão ecológica da barragem. “Ou seja, manter uma quantidade de água suficiente no rio para a reprodução de vida das pessoas, reprodução econômica, cultural. Como não se garante a vazão ecológica, o rio seca. E muitas vezes, quando a barragem enche demais, eles soltam de uma vez a água. Ou seja, em épocas normais deveria ter a vazão ecológica e não tem. E, quando vem a chuva, eles abrem as comportas de uma vez, causando enchente nas comunidades e gerando prejuízo”, explica.
O cacique Rony Tupinambá chama atenção ainda para a necessidade de cumprimento da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante o direito de povos indígenas e demais comunidades tradicionais serem consultados, de forma livre e informada, antes de serem tomadas decisões que possam afetar seus bens ou direitos. O que, de acordo com Rony, não aconteceu com as comunidades indígenas e ribeirinhas que vivem em Itapebi.
MPF apura o caso desde maio
“A usina fecha os olhos para isso. Eu não entendo porque a Defesa Civil esteve na cidade, na minha aldeia, vê esses impactos ambientais acontecendo e até agora não teve uma resposta concreta contra a usina hidrelétrica. Tanto a comunidade indígena quanto os ribeirinhos, depois da construção da usina vemos o rio seco, torrado, não conseguimos nem pegar o nosso peixe e garantir nossa alimentação”, denuncia o cacique Tupinambá.
Ele afirma que depois da última enchente, a comunidade pediu apoio do Ministério Público Federal (MPF) e da Defensoria Pública da União. Desde então, já se reuniram online com a presença também da Funai e de duas outras comunidades indígenas. No encontro virtual, em meados de agosto, o cacique relatou os desafios atravessados pela comunidade, mas os órgãos concordaram que ainda era necessário apurar se realmente era a presença da usina a responsável.
Em nota para o Brasil de Fato, o MPF afirma que teve conhecimento da situação em maio deste ano e, além da reunião para entender a situação, expediu diversos ofícios solicitando informações.
“Em setembro, deu início ao procedimento preparatório 1.14.000.001111/2023-97, que está em andamento. O procedimento preparatório é instaurado para apurar notícias de irregularidades quando os fatos ou a autoria não estão claros ou quando não é evidente que a atribuição de investigação é do Ministério Público Federal.”, completa a nota.
A Usina Hidrelétrica de Itapebi também se manifestou por meio de nota, argumentando que sua operação é a fio d’água. O que significa que seu reservatório tem uma capacidade limitada de acúmulo de água: o volume de água que chega ao seu reservatório é o mesmo que sai.
“A usina segue os padrões de operação e de segurança, além disso, seguimos a gestão de programação do Operador Nacional do Sistema (ONS), órgão responsável pelo gerenciamento do sistema elétrico brasileiro”, afirma a nota.
Sobre a comunicação com as comunidades atingidas, a empresa afirma que seu Programa de Relacionamento com a região informa o aumento da vazão e volumes “em parâmetros considerados acima dos limites operativos considerados rotineiros do rio” por meio do sistema de alerta por SMS, às comunidades próximas à barragem, às prefeituras, aos órgãos de proteção e defesa civil.
A usina informou ainda que vem mapeando as áreas potencialmente inundáveis às margens do rio Jequitinhonha em caso de cheias naturais.
Contexto estadual
O MAB vem cobrando junto ao governo do estado a construção de uma Política Estadual dos Atingidos por Barragens (PEAB), para prever normativas que garantam direitos aos atingidos e atingidas por construções de barragens. “Hoje não existe nenhuma lei que garanta nossos direitos, seria um grande passo para minimizar os danos históricos causados por essas empresas”, avalia Moisés.
Ele ressalta que esse plano já foi apresentado ao governo Jerônimo e está em processo de análise interna. A construção e operação de usinas hidrelétricas frequentemente têm impactos significativos nas comunidades tradicionais e em seus territórios.
Impactos que podem afetar ecossistemas aquáticas e terrestres, influenciando na disponibilidade de recursos naturais como peixe, caça e plantas medicinais; provocar deslocamento forçado devido a inundação, que leva a perda de moradias, terras agrícolas e meios de subsistência; mudanças no fluxo de água, o que pode afetar a disponibilidade de água para beber, irrigação agrícola e outros usos tradicionais das comunidades indígenas; além de impactos culturais e espirituais.
Assim, Moisés ressalta que o caso de Itapebi não é isolado. “Em 2010, a Comissão Nacional de Direitos Humanos fez uma investigação no Brasil inteiro e constatou que, ao se falar em barragem, desde o anúncio da obra até a construção e operação das usinas, há pelo menos 16 direitos humanos sistematicamente violados”, conta.
Além disso, ele aponta a importância da reparação, pensando comunidades comprovadamente atingidas há décadas por usinas hidrelétricas. “Essa dívida histórica deve vir com políticas públicas e a participação efetiva dos atingidos na elaboração e implementação dessas políticas. Isso diminuiria a invisibilidade histórica que essas comunidades tiveram ao longo desses anos”, finaliza.
Edição: Gabriela Amorim