Agricultura, soberania alimentar e convívio com o meio ambiente. Todos esses elementos em conjunto resultam na construção das chamadas hortas urbanas. Salvador possui hoje cerca de 50 hortas comunitárias, áreas públicas utilizadas para o cultivo de plantas alimentares a serem utilizadas na alimentação da comunidade. Mais do que atuar na garantia da segurança alimentar dos cultivadores, as hortas são espaços de preservação ambiental, onde a agroecologia ganha espaço em meio ao concreto do ambiente urbano.
Clara Domingas, pesquisadora e integrante do Fórum Permanente de Itapuã e do Conselho Gestor da APA Lagoas e Dunas do Abaeté, acredita que o primeiro processo de criação da horta se dá no reconhecimento do espaço que será ocupado para garantir o equilíbrio ecológico. “Acho que o fator principal é esse de entender o ecossistema que a gente está, o que resta dele e como a gente pode intervir e quais são as tecnologias de restauração que a gente pode aplicar nesse sistema de dunas já tão escarnado”, comentou.
Ela explica que a escolha do que cultivar também é movida pelo objetivo de valorizar as espécies nativas. “Não é só reinserir elas em pequenos canteiros possíveis dentro da obra, mas colocar QR Code para as pessoas passarem e terem acesso à informação daquelas espécies, a interação delas com a fauna que é de extrema importância. Realmente não pensar as espécies isoladas, mas as interações e também sítios de memória”, acrescentou Domingas.
Resgate de memória e cultura
A pesquisadora destaca ainda a importância da relação social, cultural e histórica que a comunidade desenvolve com as hortas, em um processo de resgate ancestral da cultura de valorização dos pequenos produtores da região. Ela dá o exemplo de Itapuã, local em que habita e desenvolve sua pesquisa, que já foi um importante local de pesca, criação de gado e produção de alimentos.
“Itapuã era mais ligado às vilas pesqueiras do litoral norte, não era exatamente Salvador, onde a produção de gado era ligada aos produtos da terra, junto com as atividades pesqueiras. Esse contato direto, na produção de alimentos, é um resgate de um modo de viver mais biointegrado e a gente está passando por uma série de alterações, descaracterizações das paisagens muito vorazes, muito rápido. Isso desapropria as pessoas da memória simbolicamente do seu senso de pertencimento deixa de valorizar ofício do pescador, deixa de valorizar o ofício dos pequenos produtores”, defende.
Com pensamento semelhante, a idealizadora da iniciativa Canteiros Coletivos, Debora Didone, ressalta a importância de cultivar espécies que já são conhecidas da comunidade e que trazem uma ligação dessa memória e ancestralidade. “São referências que fazem com que as pessoas se aproximem desse jardim e criem uma relação com esse espaço verde, que deixa de ser um espaço verde decorativo. Os espaços verdes eles não são decorativos, eles são ecossistêmicos, eles servem para conectar, para que a cidade tenha uma relação de fechamento de ciclo”, explica.
Para além disso, Didone explica que também é importante entender o ecossistema onde a horta será implantada para garantia da qualidade do plantio. “No caso de plantio em áreas ociosas ou áreas de descarte, é [importante] entender como plantar, onde plantar porque, a depender do tipo de descarte que tem ali, pode haver contaminação do solo”, acrescenta.
Nos casos em que se identifica a contaminação de solo, Débora Didone explica que é preferível realizar o plantio em vasos ou outras estruturas que evitem o contato das plantas diretamente com o solo, para que não haja contaminação dos alimentos produzidos. Quando é possível realizar o plantio direto, ela explica que também é importante consorciar com plantio de árvores. “Tentar reflorestar, tentar arborizar e trazer uma vegetação para que esse solo aos poucos vá se recompondo. A gente sempre preza pelo plantio agroflorestal, combinado com árvores nativas, porque as árvores nativas são essenciais para absorção da água da chuva pelo solo, para manutenção e recuperação da saúde do solo”, destacou Débora.
Agroecologia na cidade
A iniciativa Canteiros Coletivos busca viabilizar a implantação de hortas, jardins de chuva e canteiros dentro do ambiente urbano. Débora explica que os projetos são sempre fundamentados na agroecologia, buscando a conservação da biodiversidade e equilíbrio dos ecossistemas. “A agroecologia ela faz parte disso, entendendo que a gente imita o que a floresta faz. A floresta é um ecossistema autossuficiente, que se mantém, porque ela tem diversidade de plantas, de todos os tamanhos, rasteiras, arbustivas, herbáceas, trepadeiras, árvores de grande porte. E as plantas se ajudam uma ajuda a outra”, explica.
Apesar de estarem baseadas em práticas ambientais saudáveis, as hortas sofrem com o embate à urbanização. As cidades se expandem, dificultando a existência e manutenção de projetos como este. “A gente está frente a frente com uma faceta de uma expansão urbana contínua e voraz, que vai incorporando terrenos valorizados”, acrescente Clara Domingas.
Soberania alimentar e fome
Além do importante caráter ambiental, as hortas urbanas têm uma outra preocupação igualmente relevante com a soberania e segurança alimentar das pessoas da cidade. Debora Didone aponta que o ambiente da cidade dificulta o acesso a alimentos saudáveis e frescos e proporciona uma alimentação baseada em consumo de alimentos ultraprocessados, um prejuízo à saúde.
“As grandes cidades têm um problema em comum que é muito sério, que é a escassez de acesso aos alimentos saudáveis. As comunidades de baixa renda ficam sujeitas a um espaço restrito quase inexistente de solo livre e que, com a baixa renda, acabam se alimentando de alimentos ultraprocessado”, explica.
Para ela, é importante incentivar o uso dos espaços ociosos nas cidades, inclusive promovendo a recuperação de solo de terrenos que eram usados para depósito de resíduos, transformando-os em hortas agroflorestais e em jardins comestíveis. “Instigar a ocupação de qualquer espaço de terra, de solo livre ocioso!”, diz.
Nesse processo, as escolas podem ser importantes espaços para criação de hortas que envolvam a comunidade escolar e do entorno, tanto no aprendizado dos cultivos, quanto na conscientização. “A gente entende que os espaços escolares são riquíssimos e essenciais pra isso. É uma forma de fazer com que as pessoas se reconectem com a alimentação saudável, tenham acesso tanto à colheita quanto ao plantio. E também entendam que a mudança de qualidade de vida passa por se ter espaços verdes em áreas extremamente urbanizadas”, acrescenta.
Edição: Gabriela Amorim