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Mami Wata - A inquietante

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Mami Wata no filme do nigeriano C. J. Fiery Obasi - Divulgação
É de se estranhar como tudo que vem de África é folclorizado

O filme premiado no festival Sundance de cinema, Mami Wata, do diretor nigeriano C. J. Fiery Obasi, exibido na mostra de cinemas africanos em Salvador é simplesmente emocionante pelo roteiro, estética, cenário, fotografia, trilha sonora e elenco. Obasi conseguiu misturar fantasia e realidade, política e sagrado, tradição e modernidade em uma só película. Mas, o que chama atenção é a semelhança que essa divindade feminina tem com nossos cultos afro e o que ela representa para os povos do continente africano e da diáspora. Numa busca rápida sobre ela, me deparei com páginas que a retratavam de muitas formas, mas as que me deixaram intrigada foram as que tratavam essa deidade como folclore. É de se estranhar como tudo que vem de África é folclorizado.  

O modelo de modernidade, desenvolvimento e progresso ocidental que prioriza a razão e uma cisão entre mente, espírito e corpo, sagrado e realidade, tenta aniquilar tradições que figuram como o Outro não ocidental. E instala relações de desigualdades, inimizades e comparações incabíveis entre povos. Pode-se dizer que a folclorização é um mecanismo (de defesa?) para isso. As tradições não ocidentais, ainda que influenciadas pela empresa colonial, nutrem e sustentam uma comunidade, um sistema social que mantém relações com outros seres e com o divino como parte de uma existência compartilhada. E esse contexto de tensões e conflitos é bem retratado por Obasi.  Mas, além dessas observações sobre o filme, me interessa abordar Mami Wata, essa figura sagrada e mitológica, na relação com o simbólico que também constitui o Eu, a nossa psique.

Como se pode ver em alguns registros, Mami Wata representa várias divindades do panteão das águas e que compõem as tradições religiosas do continente africano, principalmente da África Ocidental, antigo Reino do Daomé, onde é cultuada como vodum, e da diáspora. Essa deidade está entre o mar e o rio e assume muitos nomes. Mami Wata é também uma corruptela de Mommy Water (mãezinha das águas). O que denota uma criação a partir do contato entre culturas diferentes como a africana, indígena e a europeia. Aqui no Brasil, a Mami Wata é representada por Yemanjá, mas também por Oxum, Janaína e Iara. São as sereias encantadoras das águas doces e salgadas.

Mami Wata é uma representação ancestral da nossa ligação com o sagrado, com a natureza e com o mistério. É a mãe que nos alimenta, protege e nos desafia com seus fenômenos. Somos seus filhos. Como diz Ailton Krenak, tudo é natureza, nós somos natureza e somos parte desse organismo vivo maior chamado Terra. Nos alienamos disso do qual somos parte e passamos a acreditar na verdade única sobre como existir neste lugar de modo cada vez mais artificial, plástico e embotado emocionalmente. Estamos capturando, sequestrando e devorando os recursos naturais que nos mantêm vivos.

Estas ações foram bem empreendidas na expansão marítima colonizadora e escravizante de povos africanos e indígenas. O que antes era feito por um grupo de organismos que se intitularam humanos, brancos e europeus se espraiou como uma praga, a do universalismo que toma a todos nós e faz um ideal de Eu se reproduzir como célula cancerígena. Um ideal de Eu que alimenta o pensamento universal, defende uma ética única, um único deus, um único modo de vida, um único tudo. Soterra a diversidade que somos. E por mais que saibamos disso, ainda assim, desejamos nos inscrever no registro simbólico desse ser humano universalizante, quase como uma espécie de defesa daquilo que somos – natureza.

Mas, o que tem nos levado a reproduzir este horror? Parece que reprimimos nosso ressentimento dos fenômenos naturais que nos desafiaram a lutar pela nossa existência, reprimimos a memória de que somos parte deste organismo vivo e de seus mistérios. E como se sabe, toda repressão causa angústia, ou melhor aquilo do qual temos dificuldade de dar nomes e que nos consome e atordoa. E esse conteúdo reprimido retorna como estranho familiar, como inquietante porque o afeto ligado ao conteúdo foi alienado de sua memória na repressão. A Mami Wata é essa figura inquietante, assustadora que remonta ao que há de muito conhecido e que deveria permanecer secreto, oculto, mas aparece nos mistérios, nos fenômenos, nos grupos de organismos que insistem em cultuá-la. Será a folclorização esse mecanismo de defesa para lidar com o que nos parece inquietante? Mami Wata aparece para dizer que somos seus filhos, somos natureza também. 

Edição: Gabriela Amorim