A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Rosa Weber, iniciou o julgamento da ação que trata da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Antes de se aposentar, em uma sessão virtual, Weber depositou seu voto favorável à descriminalização. A sessão foi suspensa, a seguir, e deve seguir presencialmente com o voto dos demais ministros e ministra, ainda sem data para ser retomada.
A ação que está sendo julgada requer não se considere mais crime a interrupção voluntária da gestação de até 12 semanas. O objetivo é garantir às mulheres o direito constitucional de interromper a gravidez, de acordo com a sua escolha e autonomia, sem a necessidade de consentimento do Estado. A descriminalização, se for aprovada, também vai garantir aos profissionais de saúde o direito de realizar o procedimento.
Para refletir sobre esse assunto, o Brasil de Fato Bahia entrevistou a parteira, enfermeira e arteterapeuta, Paula Viana, uma das coordenadoras do Grupo Curumim. Com mais de 30 anos de atuação em políticas públicas de saúde sexual e reprodutiva no Brasil, Paula destacou os prejuízos causados pela criminalização do aborto, ao mesmo tempo em que trouxe reflexões importantes sobre as possibilidades que se apresentam com a descriminalização e novas políticas públicas.
Brasil de Fato - O STF iniciou o julgamento do processo que pede a descriminalização do aborto até as 12 de gestação. Qual a relevância desse momento? O que representa para as mulheres brasileiras essa possível vitória na Corte?
Paula Viana - Tem uma importância imensa se colocar a pauta, discutir, debater o aborto no Brasil. Essa ação é importante porque ela realmente salva vidas. A criminalização afasta as mulheres dos serviços de saúde. Elas têm medo de serem, além de mal atendidas, de serem discriminadas, de serem presas, de serem atacadas e acusadas por realizarem um aborto. Esse sentimento é mantido mesmo quando estão em situações de abortamento espontâneo ou quando estão numa situação de aborto legal que esteja dentro dos três permissivos que, até então, o Brasil tem. Quando a gravidez é em consequência de um estupro, quando a gravidez põe em risco a vida da mulher e quando o feto tem anencefalia, uma formação muito grave e incompatível com a vida e que pode ter acesso ao aborto legal através de uma vara judicial.
Com a criminalização, mesmo com esses permissivos, as mulheres ou as pessoas que gestam têm medo, porque esse é um assunto tabu. É um assunto que tem um estigma imenso e que sempre foi tratado na página policial dos noticiários. Então, é uma questão gravíssima de saúde pública. Tão grave que ela aparece nas taxas, por exemplo, das causas de morte materna no Brasil. O aborto, as complicações do aborto, geralmente as complicações de aborto clandestino, que terminam com a necessidade de internamento hospitalar, sofre, muitas vezes, um retardo na busca por ajuda. Esse atraso se deve a ação da criminalização do aborto.
A descriminalização vai trazer um descortinamento desse assunto que sempre foi tratado sob a ótica criminal e punitiva. Já que muito antes de atender as mulheres, a não disposição daqueles profissionais vão julgar aquilo como crime até tentar punir ou acusar aquelas pessoas que chegam aos atendimentos pedindo por ajuda.
Enquanto enfermeira, a primeira coisa que eu vejo como importante nessa ação é que vai diminuir as barreiras para as mulheres terem acesso aos serviços de saúde com mais tranquilidade, com mais confiança. Isso, certamente, vai impactar sobre esses números que, infelizmente, a gente ainda convive no Brasil. Uma causa que é 100% evitável com planejamento reprodutivo, com decisões respeitadas. Nós não podemos admitir que mulheres morram ou que mulheres sejam presas por uma decisão de vida, uma decisão de saúde. Uma decisão de seu destino. E acho que essa é a grande importância. Tratar e colocar o aborto na esfera da saúde, onde ele deve ser tratado.
É função primordial do Supremo Tribunal Federal (STF) zelar pelo cumprimento da Constituição. A ADPF 422 pede justamente que a Constituição de 1988 seja soberana no entendimento sobre os direitos à liberdade, igualdade, saúde, planejamento familiar e na proteção contra tortura e tratamento desumano das pessoas que gestam. Esses direitos têm sido violados por uma legislação anterior à Constituição, o Código Penal de 1940, elaborado quando ainda não havia a igualdade formal entre homens e mulheres. Como você lê essas contradições?
Alguns aspectos dessas contradições entre um Código Penal que foi construído e finalizado numa época, por exemplo, que a gente não tinha tanto avanço tecnológico e que não tinha as opções que nós temos hoje. No caso de métodos contraceptivos, não se tinha um entendimento. As mulheres não tinham seus direitos completamente protegidos. Imagina na década de 40, nós mulheres não podíamos nem decidir sobre nossa casa, sobre os nossos bens. Tudo era por ordem do pai ou do marido, pós casamento. Imagine que esse Código Penal foi feito nessa época. Nós temos na Constituição a abolição de vários tipos de violações que nós, mulheres, sempre tivemos, sempre passamos. Uma delas é essa questão do acesso a tecnologias que garantam um tratamento adequado. Inclusive, um dos argumentos, no caso da anencefalia, foi justamente esse. A gente não tinha ainda condições de diagnosticar precocemente essas malformações incompatíveis com o viver. Então, foi um argumento bastante utilizado, que teve um foco importante durante o processo do julgamento de gravidez com anencefalia.
Há muitas contradições relacionadas a isso. No campo do direito, no campo do acesso à tecnologia, dentro do direito à saúde, a gente pode também abordar algumas dimensões desse lado do diagnóstico, do tratamento. Se por um lado, a gente tem avanços na área da tecnologia, na área da obstetrícia, que hoje não tem comparação com a que se vivia no passado, existe também as contradições da vida social. Nós mulheres temos o direito a nossa cidadania plena, e ela passa pelo direito de decidir sobre o corpo, sobre a sua vida. Essa é uma grande contradição. Não é justo que carreguemos o ônus dessa vida reprodutiva quando não temos essa garantia do respeito a essas decisões e a esse exercício de cidadania plena.
A criminalização não impede o aborto que é uma prática comum na vida reprodutiva. No Brasil, quase 5 milhões de brasileiras já passaram por essa experiência. E quem aborta são pessoas comuns: 67% já são mães e 81% professam alguma religião. Quais prejuízos a criminalização pode trazer à vida sexual e reprodutiva das mulheres e pessoas que gestam?
O prejuízo da criminalização é que ela traz retardo no atendimento à saúde. Mulheres que têm medo, como eu falei, de chegar ao serviço de saúde por medo de discriminação, medo de serem acusadas, de serem presas, de serem desrespeitadas. Esse retardo causa várias complicações, como hemorragias. A hemorragia chega a um ponto que, mesmo a mulher sendo atendida na emergência, é impossível de repor o sangue que ela perdeu. Existem infecções de todo um sistema reprodutivo, de todo o sistema genital, que levam a choque séptico, conhecido como septicemia.
As mulheres em situação de desespero, às vezes, utilizam recursos completamente fora dos parâmetros da saúde, da higiene, e isso pode trazer sequelas gravíssimas. Dor pélvica crônica e até infertilidade. Então, há também, nesse caso, um prejuízo a sua saúde sexual, reprodutiva e também a sua própria vida. A criminalização faz também com que os profissionais de saúde fiquem constrangidos em assumir determinados protocolos, inclusive protocolos que são recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Os profissionais de saúde são mal informados, mal respaldados pelos seus Conselhos, porque não têm informação que circule mais abertamente, mais tranquilamente sobre aborto. Eu sou enfermeira e na minha formação nós aprendemos a discriminar as mulheres que chegavam [após tentativa de aborto]. Quando estava em aulas práticas, faziam isso: “Essas mulheres, elas tentaram aborto, então deixa aí esperando para ver se elas aprendem pelo sofrimento a não fazer mais isso”. Muitas mulheres morrem de aborto e não são poucas. Cerca de 200 mulheres por ano morrem de aborto no Brasil, sendo a quinta maior causa de morte.
A gente sabe que esses abortos poderiam ser seguros. A gente poderia ter a tecnologia que existe e que pode estar disponível, mas que no Brasil ainda não está. A criminalização interfere no acesso à tecnologia que nós, brasileiros, poderíamos ter.
Não é exagero afirmar que a criminalização mata as pessoas que gestam. A cada dois dias uma mulher morre por consequência de um abortamento feito de maneira insegura. Esta é uma das principais causas de mortalidade materna no país e em muitos outros casos a pessoa que gesta não vai a óbito, mas fica com sequelas. Pode refletir sobre essa correlação?
A mortalidade materna pode diminuir cerca de 11% se nós pudéssemos descriminalizar. Com a descriminalização, a gente tem como fazer com que os serviços de saúde derrubem algumas barreiras que fundamentam as posturas dos profissionais, dos gestores. As mulheres que complicam e que precisam de um internamento, principalmente, até a 12ª semana, onde a tecnologia é muito mais simples. O procedimento pode ser feito até em casa em um procedimento ambulatorial. Não é necessário um procedimento cirúrgico. Por isso, defendemos a descriminalização até a 12ª semana.
É preciso refletir que essas complicações também geram gastos imensos para o Sistema Único de Saúde (SUS) que tanto necessita de leitos hospitalares. A gente teria menos leitos hospitalares ocupados para os procedimentos simples. Além de gastos com sangue, com suprimento de bolsa de sangue, com medicações, com antibióticos, com grandes medicações, com centro cirúrgico, com anestesia. O abortamento que é realizado até a 12ª semana, através de processo medicamentoso, não leva a nenhum tipo de complicação como essas que eu falei: hemorragia e infecções. Aqui, também há um impacto muito grande sobre os custos.
A cada ano, cerca de 20 mil crianças entre 10 e 14 anos dão à luz. A pouca idade e a falta de maturidade, natural da própria condição infantil, tornam esse grupo menos capaz de reconhecer os sinais de uma gestação ou de denunciar a violência sexual que sofreram. Um exemplo recente e que repercutiu no país foi o caso da criança de 10 anos que foi pressionada por emissários da ex-ministra Damares Alves para não abortar. Como fica a proteção da infância diante da criminalização do aborto?
Há uma hipocrisia muito grande em relação à proteção da infância. Fala-se da proteção à vida, mas que vida? Aqui em Pernambuco, nós tivemos dois casos bem emblemáticos. Em 2009, foi um caso de uma menina daqui mesmo do estado e outro agora, recentemente, em 2020, o caso da menina do Espírito Santo que teve que vir para Recife. Uma coisa que não deveria acontecer. O estado do Espírito Santo tem condições de atender gravidezes avançadas e isso é uma grande questão. As crianças, geralmente, não entendem, todo o processo da gravidez, e, quando percebem que há alguma mudança e que podem externar de alguma forma para algum parente mais próximo, algum familiar em que possa confiar, a gravidez, em geral, já está avançada.
Muitas vezes, essa menina está dentro de casa e sofre a violência de familiares. Todas essas dificuldades de encarar o problema interferem no tempo. Nesses casos, que a gente encarou aqui em Recife, caso de meninas muito pequenas, com uma formação física muito frágil, essas meninas entram no direito, nos dois permissivos. Por ter sido vítima de violência sexual e pela possibilidade de risco de morte. Essa questão do “risco”, esse julgamento só pode ser feito pela família e pela própria menina. Eles que têm que decidir se tem um risco de 1%, 2%, 20%, 100%. É o caso da família ou do responsável decidir, e não dos profissionais de saúde.
Quem mais sofre pela criminalização do aborto no Brasil são essas meninas. Elas sofrem duplamente. Sofrem por terem sido violadas, por terem sua infância roubada, e sofrem por encontrar barreiras para que o tratamento seja realizado no seu corpo, tão frágil e ainda em formação.
A criminalização do aborto institucionalizada e a discriminação racial são combos que atingem, fortemente, mulheres negras e de baixa renda. Ou seja, mulheres com menos acesso à informação sobre educação sexual, métodos contraceptivos e planejamento familiar. São essas mesmas mulheres que, depois, estarão privadas de acompanhamento médico e de assistência do Estado na criação dos filhos. Manter o aborto criminalizado significa agravar e perpetuar essas desigualdades? Quais as repercussões disso nos corpos das pessoas negras que gestam?
Nós temos visto a experiência de outros países. Isso leva tempo. São processos. Quando o aborto é descriminalizado há toda uma reorganização, uma reorientação que vai promover a saúde reprodutiva, que vai promover as orientações quanto ao planejamento reprodutivo, vai haver mais abertura entre a equipe de saúde e a comunidade. Você colocar, por exemplo, a questão, do debate do aborto na atenção básica, que é crucial para entender esse processo. O estigma afasta os profissionais daquele atendimento de excelência que aquela pessoa poderia receber.
Nos países que a gente tem acompanhado e onde o aborto foi descriminalizado, há uma responsabilização maior do Estado. Há uma proposta de tentar garantir ao máximo que essas mulheres sejam bem acompanhadas, principalmente, no período pós aborto. E o pós aborto é muito importante para gente proteger essa pessoa de alguma forma, com a oferta de métodos que possam devolver a ela aquele ambiente em que ela vive e que esteja inserida, protegida. Que ela possa aderir aos programas de proteção social em relação à violência, ou que ela possa aderir a programas de planejamento reprodutivo, porque vai haver uma reorganização sem o peso que é a criminalização. Esse peso sai das costas dos profissionais. Esse peso sai das costas das mulheres que podem ter a segurança de que serão bem atendidas para, precocemente, acessarem os serviços para o seu tratamento adequado.
A América Latina e Caribe é a região com maior taxa de abortos, apesar de ser uma das regiões com leis mais punitivas. Isso nos permite afirmar que descriminalizar o aborto abre o caminho para que as mulheres sejam mais acolhidas pelo sistema de saúde? Quais possibilidades se abrem para a saúde da mulher, com programas de prevenção da gravidez indesejada e do planejamento familiar, a partir de novas políticas públicas?
O impacto da criminalização é tão grande que, à medida que essa criminalização deixa de existir, nós vamos ter uma progressiva melhora no sistema de informação sobre aborto no Brasil. Nós sabemos que a saúde pública, a saúde como um todo e as políticas públicas são construídas e executadas a partir de um planejamento. A gestão federal, a gestão estadual e a gestão municipal realizam esses planejamentos de ações e de suas políticas. Esse planejamento, por sua vez, é baseado em informações do sistema de saúde. Portanto, um dos impactos mais importantes na saúde pública e na política pública é sobre o sistema de informação.
Se nós tivermos um sistema de informação desbloqueado desse estigma, de que o aborto é crime, de que aborto está errado e de que a mulher que aborta deve ser punida. Se as políticas públicas se desenham, se planejam a partir da premissa de que o aborto não vai ser criminalizado, de que o aborto pode ser precocemente atendido e que a decisão da mulher deve ser acolhida e que as pessoas entendam que o aborto tem que ser, em primeiro lugar, uma decisão da mulher, tem que ser voluntário e tem que ser a partir da decisão da mulher, então, o aborto vai ter esse impacto na saúde integral das pessoas. A repercussão da descriminalização vai melhorar a saúde das pessoas que já estão nos serviços, a saúde financeira [do SUS] e vai melhorar também o relacionamento entre as equipes de saúde e as usuárias e usuários desse sistema. O Brasil deve isso às mulheres, e nós temos a maior esperança de que o STF, que é garantidor do cumprimento da Constituição cidadã, entenda o papel do Estado Brasileiro em defender a saúde e a vida das mulheres, descriminalizando o aborto até a 12ª semana de gravidez.
* Esse conteúdo foi produzido com o apoio do Edital Futuro do Cuidado.
Edição: Gabriela Amorim