Joaquim, Chico, Odezina, Maria, José Antero e Jorge. Esses foram alguns dos nomes lembrados, na manhã da última terça-feira (19), em uma celebração no território de Areia Grande, em Casa Nova (BA). A memória desses e outros trabalhadores e trabalhadoras e de suas lutas em defesa do território se fez presente nas falas, fotos e ornamentação do espaço durante todo o encontro comemorativo.
A decisão do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), de maio deste ano, reconhecendo que o território de comunidades tradicionais de fundo de pasto de Areia Grande é composto por terras devolutas do estado da Bahia e, portanto, alvo de grilagem de terras, motivou a celebração de terça.
Moradores e moradoras das comunidades de Areia Grande, da vizinhança e de outras regiões do município se reuniram na sede da associação do território para celebrar essa vitória judicial dos trabalhadores e trabalhadoras rurais. O encontro contou ainda com a participação de representantes de organizações de trabalhadores, entidades populares, Diocese de Juazeiro e órgãos públicos municipais.
Resistir para existir
A celebração teve início com uma breve linha do tempo sobre o histórico de resistências de Areia Grande, território com cerca de 400 famílias das comunidades Melancia, Riacho Grande, Salinas da Brinca, Jurema, Tanquinho, Ladeira Grande, Lagoado, Lagedo, Lagoinha, Pedra do Batista e Pilão.
Nesses 48 anos de “re-existência” – como estava escrito em uma faixa na entrada do local –, as lutas em defesa do território se deram a partir de três marcos: década de 1970, com a construção da Barragem de Sobradinho; de 1980 a 1984, grilagem da Agroindustrial Camaragibe; e de 2008 até o momento atual, ameaças de empreendimentos agrícolas e energéticos no território.
Em quase 50 anos de lutas, as comunidades de Areia Grande tiveram que resistir para continuar existindo, através da organização em comunidades eclesiais de base (CEBs), enquanto território tradicional de fundo de pasto e fortalecendo a união das comunidades presentes no território.
Dona Laurita Santos, do Riacho Grande, comentou que o momento mais difícil enfrentado pelas comunidades foi a partir de 2008, quando o conflito chegou ao extremo, culminando, em 2009, no assassinato do trabalhador rural José Campos Braga (Zé de Antero).
“Esse conflito trouxe muito sofrimento em nossa vida, vocês tão vendo a foto do nosso companheiro Zé de Antero, foi tirada a vida dele dentro de nossa área, porque ele não queria dar as nossas terras para os grileiros. Mas Deus continuou nos dando força, fé e união pra nós estarmos todos juntos e firmes em nossa luta e ficar com nosso território abençoado para o resto de nossas vidas”, afirmou Dona Laurita.
Jeová Almeida, da Jurema, destacou ainda a importância produtiva do território de Areia Grande e o quanto o conflito agrário prejudicou não só a população local, mas toda a região. “Quando ficamos 15 dias sem poder entrar no território [em 2008], o povo de Petrolina, Bonfim, Casa Nova ficava perguntando cadê o povo da Areia Grande? Cadê a farinha, o beiju, os bodes? Foi difícil para todos. Só diz que o nosso lugar não presta quem não tem conhecimento daqui”, ressaltou o trabalhador rural.
Celebração religiosa
Após esse histórico das resistências comunitárias, o bispo da Diocese de Juazeiro, Dom Carlos Alberto Breis, presidiu a celebração de uma missa, acompanhado dos padres José Benedito Rosa, João Borges e Aluísio Borges.
Durante a missa, Dom Beto lembrou de quando conheceu Joaquim Rocha (Seu Quinquim, falecido há seis anos), no ano de 2016, quando esteve no território de Areia Grande pela primeira vez.
“Eu fiquei impressionado com a liderança de Seu Quinquim, uma liderança que brota exatamente da fé e de como ele fazia a relação da luta pela terra do povo de Deus, que era escravo no Egito, com a luta do povo de Areia Grande. Com um pé na bíblia e um pé nessa realidade, ele ia animando a comunidade”, disse o bispo.
Dom Beto também destacou que a história de Areia Grande serve de inspiração para outras comunidades dos municípios da Diocese de Juazeiro que estão enfrentando conflitos territoriais, a exemplo das comunidades atingidas por mineradoras em Campo Alegre de Lourdes e Sento Sé. “Essa vitória de Areia Grande vai trazer muita luz, coragem e ânimo para as comunidades que estão sendo ameaçadas”, comentou.
Parceiros de caminhada
Depois da Missa, pessoas que estiveram junto às comunidades de Areia Grande nessas décadas de lutas, a exemplo de advogadas, agentes pastorais e pesquisadores, utilizaram o espaço celebrativo para relembrar momentos marcantes da caminhada e expressar o carinho pelo povo de Areia Grande.
A professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Tatiana Dias Gomes foi uma das advogadas que acompanhou as comunidades de fundo de pasto na primeira década dos anos 2000. Ela lembrou dos diversos desafios no âmbito do poder judiciário, da violência contra os camponeses e camponesas e afirmou que a vitória no TJ-BA só foi possível por conta da organização das comunidades rurais.
“Os lírios não vão nascer das leis, a gente vai fazer com que os lírios nasçam justamente da nossa luta, Areia Grande sempre foi uma grande escola e uma grande família”, disse Tatiana.
A organização das comunidades de Areia Grande em defesa do território também foi citada como inspiração pelo integrante da coordenação nacional da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) Cícero Félix. Em 2008, Cícero atuava como agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e viveu de perto o conflito em Areia Grande.
“Essa vivência toda de vocês é uma grande escola, quem quiser aprender sobre luta em defesa do território, tem que aprender com Areia Grande”, destacou Cícero.
A integrante da coordenação da CPT Bahia, Maria Aparecida de Jesus, agradeceu por todo o processo de aprendizado e trocas de saberes entre a Pastoral e as comunidades de Areia Grande, em espaços de lutas e formações regionais e à nível nacional, e pela “esperança e profecia que semearam na CPT e no coração de cada um”.
A agente da CPT, nascida e criada no território da Areia Grande, Marina Rocha, encerrou os depoimentos dizendo que a história de Areia Grande vai sempre “animar a caminhada e a esperança das comunidades de fundo e fecho de pasto”.