O Supremo Tribunal Federal deve iniciar o julgamento da descriminalização do aborto nesta sexta-feira (22). Caso seja aprovada, o aborto deixará de ser crime no país, o que pode trazer repercussões positivas em diversos aspectos da saúde pública. Isto porque a estigmatização e criminalização do aborto no país têm repercussões diversas na saúde e na vida das mulheres, meninas e pessoas que gestam. A mais visível delas, talvez, seja os altos índices de mortalidade materna, a maior parte, por causas evitáveis – como as mortes em decorrência de abortos inseguros.
Elaine Passos, psicóloga especialista em Psicologia Hospitalar, mãe e atuante na área de Direitos Sexuais e Reprodutivos no SUS na Bahia, destaca que as mortes em decorrência de aborto inseguro são mais comuns entre as populações mais pobres, por isso mesmo é importante tratá-las como uma questão de saúde pública.
Por falta de condições financeiras ou por medo de acessar serviços não legalizados, grande parte das mulheres que desejam interromper uma gestação acabam por realizar procedimentos inseguros que levam a hemorragia e infecções. Por medo de represálias, nem todas elas buscam o serviço de saúde mesmo em casos de complicações graves.
“Em caso de hemorragia, de infecção, dor intensa, elas podem, sim, após a tentativa [de aborto], recorrer aos serviços de saúde. Não só podem como devem buscar esses serviços de saúde. Lá, elas têm o direito, sim, de ter atenção humanizada ao abortamento prevista já em norma técnica. E não podem ser discriminadas”, ressalta Elaine
Sigilo médico
Para essas mulheres, assim como para qualquer outro paciente, o sigilo médico é um direito garantido por legislações brasileiras. Lívia Almeida, membro do Núcleo dos Direitos das Mulheres na Defensoria Pública da Bahia, explica que a equipe médica não pode denunciar essas mulheres, muito menos ela pode ser presa durante o atendimento médico. “Profissional de saúde não tem dever de polícia judiciária. Então, eles não devem investigar essa mulher”, lembra.
Elaine Passos explica que, independente do motivo que levou ao adoecimento, qualquer pessoa tem o direito ao atendimento médico de qualidade e livre de violências. “A saúde é direito de todos independente da condição em que a saúde foi degradada, ela precisa ser recuperada com todo conforto e qualidade de atendimento que a população merece”, afirma.
A defensora pública Lívia Almeida explica ainda que, em casos que o serviço de saúde aciona a polícia por suspeitar que a paciente realizou um aborto, são os profissionais do serviço que cometem um crime. “Esses e essas profissionais que têm esse tipo de conduta é que podem ser responsabilizados criminalmente por violação de sigilo [com base] no Código Penal”, diz.
Ela acrescenta que os processos criminais que estão sendo iniciados contra as mulheres com base em provas colhidas através da quebra do sigilo da paciente não têm sido levados adiante na justiça por uso de prova ilícita. E qualquer pessoa que, ao buscar serviço de saúde, sofra alguma situação como essa, deve procurar a Defensoria Pública de sua cidade para ter a defesa adequada e garantir que esse processo não prospere. “Essas ações penais, que porventura sejam iniciadas, têm sido invalidadas pelos tribunais superiores”, explica.
Ainda assim, as duas profissionais apontam que, infelizmente, as equipes não têm atendido adequadamente essas mulheres. Lívia Almeida ressalta que o estigma impede, inclusive que o aborto seja um tema tratado nas faculdades de Medicina e de Direito, ainda que seja um fato social e se refira à saúde e à vida das mulheres, meninas e pessoas que gestam.
“A gente tem feito esse trabalho de educação em direitos, trazendo para as mulheres a informação sobre seus direitos, a informação sobre essa segurança que elas possam sentir em procurar o serviço de saúde nos casos legais. E também passado aos profissionais a segurança necessária de que eles não estão cometendo crime”, acrescenta a defensora pública.
Serviços legais
Tanto Lívia Almeida quanto Elaine Passos apontam que a criminalização e o estigma do aborto têm consequências também para as pessoas que têm direito a realizar o aborto nos casos previstos em lei – violência sexual, risco de morte para gestante e anencefalia do feto.
Elaine conta que é comum as mulheres que realizarão aborto legal chegarem ao serviço de psicologia em um sofrimento muito solitário e enfrentando ainda a falta de credibilidade dos órgãos e serviços públicos que deveriam fazer o acolhimento precoce, principalmente, das vítimas de violência sexual.
“Em sua grande maioria, elas não registram ocorrência policial, pois consideram ou que vão ser mal recebidas, maltratadas neste serviço; ou que isso não vai se desdobrar em investigação, em punição para os responsáveis pela violência. É um momento muito solitário de um sofrimento intenso”, conta.
A psicóloga acrescenta uma outra grave consequência dessa estigmatização: a ideação suicida entre as mulheres que chegam ao serviço de psicologia antes de realizar a interrupção legal da gravidez. “Devido à questão cultural da criminalização do aborto, dos discursos religiosos que são transmitidos a elas nos contextos mais diversos de que aborto é crime, que é moralmente condenável, que gera castigos transcendentais, elas chegam ponderando que não podem vivenciar aquela gestação, mas também não podem abortar e que a única saída é tirar a própria vida”, conta.
Por isso mesmo, Elaine destaca a importância do acolhimento psicológico realizado a essas mulheres no SUS. “Vai ser, muitas vezes, a primeira oportunidade da pessoa poder falar abertamente num contexto não punitivo, acolhedor sobre sua experiência”, diz. E explica que isso tem uma importância fundamental para que essas mulheres comecem a elaborar essa situação e em algum momento consigam sair da condição de vítimas mais para uma condição de superação dos danos generalizados em sua vida causados por essa violência.
Lívia Almeida explica ainda que tanto a negativa de atendimento nos casos de aborto legal, quanto algumas condutas que os serviços possam adotar com pessoas que realizaram um aborto sem amparo legal são consideradas violência obstétrica. Ela cita os exemplos de conduta como obrigar que essa mulher ouça batimentos cardíacos do, mostrar uma ultrassonografia, tentar convencer por qualquer modo aquela pessoa a não realizar o procedimento, tentar de alguma forma julgar ou criminalizar aquela mulher.
“Isso é considerado violência obstétrica, e ela também pode buscar a Defensoria Pública para que atue também na responsabilização civil do profissional e também do estabelecimento de saúde”, acrescenta.
Violência sexual
As profissionais explicam também que mulheres, meninas e pessoas que gestam que engravidaram em decorrência de violência sexual não precisam apresentar registro policial para terem acesso ao direito ao aborto legal. Além disso, os avanços científicos da medicina já permitem que essa interrupção pode ser feita em qualquer idade gestacional.
“Numa situação de violência sexual, o primeiro lugar que essa vítima deve buscar é o atendimento à saúde. Existe uma lei federal, a Lei do Minuto Seguinte, que determina que todo o estabelecimento hospitalar deve prestar o primeiro atendimento de forma urgente, prioritária e acolhedora às mulheres vítimas de violência sexual”, Lívia Almeida.
Neste atendimento, que deve acontecer, preferencialmente, nas primeiras 72h após a violência, as mulheres têm direito de receber atendimento de profilaxia para evitar infecções sexualmente transmissíveis e também a contracepção de emergência para evitar uma gravidez.
Nem sempre, as vítimas procuram o serviço de saúde neste intervalo por medo de sofrer com uma abordagem não acolhedora, como pontuado por Elaine Passos. E buscam o serviço somente quando se descobrem grávidas. Nesse caso, ela explica que o serviço de psicologia está disponível para as pacientes em todas as etapas do processo, desde o primeiro atendimento até mesmo após a realização da interrupção, caso assim desejem.
Objeção de consciência
Quer seja no atendimento a pessoas que farão aborto legal ou que precisam de atendimento após um procedimento sem amparo legal, muitos profissionais têm argumentado o direito à objeção de consciência para não realizar o atendimento. A objeção de consciência é um direito previsto no Código de Ética Médica de acordo com o qual o profissional pode recursar determinado atendimento por convicções internas, individuais.
A defensora pública, Lívia Almeida, no entanto, explica que esse não é um direito absoluto e também não é um direito do estabelecimento de saúde como um todo. “O médico pode fazer isso desde que não represente uma situação de urgência/emergência, ou seja, não represente um risco que importe risco de vida àquela paciente e também desde que haja outro profissional apto a fazer esse atendimento”, conta.
Ela acrescenta ainda que, ao comunicar à paciente sua recusa, o médico não pode constrangê-la nem tampouco tentar forçá-la a mudar sua decisão, mas sim encaminhá-la a outro profissional que faça o acolhimento de forma humanizada.
*Essa reportagem foi produzida com o apoio do Edital Futuro do Cuidado.
Edição: Alfredo Portugal